Confesso que precisei de um tempinho para acalmar as ideias, o coração e minha mente antes de iniciar qualquer reflexão sobre esse livro. Por algum motivo, essa resenha, deu um trabalhão para a pessoa que vos fala, e mais do que isso, deixou a minha mente inquieta por muito tempo.Por alguns dias eu me perdi em meio a tantas ideias, reflexões e alfinetadas que o autor não teve medo de dar na nossa tão conhecida raça humana. De alguma forma consegui acalmar os ânimos, coloquei os pensamentos para tirar uma soneca, e hoje estou aqui para comentar sobre esse livro maravilhoso, que muito mais do que uma distopia, é um tapa na cara de muitas atitudes e pensamentos humanos.

Fragmentados possuí como palco um futuro não tão distante do nosso, e também não tão improvável de virar realidade. Após uma guerra sombria entre dois lados que, mesmo estando certos estavam errados, cria-se a Lei da Vida (um nome irônico para uma prática cruel). Essa lei possuí como maior objetivo “proteger” a vida. Dessa forma, o aborto é proibido, porém quando uma criança nasce, sua mãe pode escolher ficar com ela ou deixa-la na porta de um estranho, este por sua vez, é obrigado por lei a aceitar a criança em seu lar e cuidar dela. Ao mesmo tempo em que a prática do abandono é bem vista perante a lei, os pais cansados, irresponsáveis e descuidados também receberam uma colher de chá. A inteligência da Lei da Vida proclama que, durante o período que vai dos treze aos dezoito anos, os pais podem assinar os papéis referentes a fragmentação, e assim mandam seus filhos para um centro cirúrgico enorme, do qual eles nunca mais voltarão.

Fragmentários em fuga são tão comuns hoje em dia que há equipes inteiras da polícia juvenil dedicadas a encontrá-los. As autoridades transformaram a coisa em uma arte.

A fragmentação se trata de um processo cirúrgico do qual o paciente (entenda paciente por jovem desafortunado) a ser fragmentado recebe uma anestesia geral e é mantido vivo e consciente até o final da operação. Nesta operação o jovem que teria toda uma vida pela frente é literalmente cortado em pedaços, nada é descartado ou feito de qualquer maneira. No final de três horas de cirurgia os médicos possuirão órgãos vitais, pernas, braços, olhos e tudo o que antes fazia parte de um ser vivo. Essas partes farão então parte de um banco de órgãos que poderão suprir a necessidade de toda a população, em caso de necessidade, são os fragmentados que “salvam” vidas.
É nessa sociedade insana que vivem os nossos queridos personagens principais. É por causa dessa terrível prática que nossa história acontece e os caminhos de três jovens se cruzam. Tudo começa com Connor, que no momento em que descobre que seus pais assinaram a ordem de fragmentação, resolve fugir antes que sua vida seja tirada de si. O destino do jovem irá se cruzar com o de Lev, que no momento em que era levado como dízimo para o centro de fragmentação, é bruscamente afastado de seu caminho e usado como refém para que Connor fosse capaz de fugir dos policiais que o perseguiam e iriam obriga-lo a seguir para o Campo de Colheita (um nome bonito para um local terrível). Em meio à confusão causada pela fuga de Connor, outra variável se junta ao nosso grupo. Risa, uma órfã que estava sendo levada por um ônibus para o mesmo destino dos dois jovens, se vê livre para tentar sobreviver até os dezoito anos. Juntos esse três jovens iniciarão uma dura jornada pela sobrevivência, e unidos eles serão capazes de provar que, só porque a lei diz, não significa que é verdade.

E foi aí que eu percebi que as pessoas que estavam chorando eram as mesmas que haviam passado o bebê de porta em porta. Eram elas, assim como os meus próprios pais, que haviam ajudado a matá-lo.

Fragmentados é um livro absurdamente genial, com uma história que irá se instalar em sua mente por muito tempo, te fará pensar e refletir, e com sorte, irá deixar muitos leitores mais críticos com relação a diversos assuntos abordados na sociedade atual. Neste livro, muito mais do que criar uma distopia de peso, o autor preenche as páginas com diversas críticas à sociedade atual. Os acontecimentos e situações, apesar de serem levados ao extremo, são reais, palpáveis e infelizmente já fazem parte de nosso contexto. Engana-se quem pensa que o ser humano nunca seria capaz de cometer no mínimo uma das diversas atitudes abordadas pelo livro.Através de uma narrativa instigante, curiosa e emocionante o autor nos faz pensar sobre as irresponsabilidades humanas. Ele aborda de maneira simples e direta assuntos como o abandono, a descrença e a desistência observada não apenas em pais cansados e aflitos, mas também na sociedade de forma geral. Quantas vezes não ouvimos falar de pais que abandonam seus filhos, quantas vezes não observamos casos de pais que não foram capazes de educar bem seus filhos, ou que não foram capazes de encarar com coragem e determinação a confusa fase que é a adolescência?! A história de Fragmentados vai muito além do entretenimento, e da atual febre por distopias, ela nos faz pensar sobre assuntos presentes e discutidos na sociedade atual.

Um destaque importantíssimo, que surgirá apenas lá pelo meio da história, mas que eu não poderia deixar de comentar, se apresenta na forma de um personagem chamado Hayden. Esse personagem me conquistou desde o momento em que apareceu em cena. Hayden, apesar de tudo é carismático, engraçado em sua forma única e inteligente de ser, apesar de possuir um certo destaque na obra, gostaria de observar mais de sua personalidade ao longo da narrativa, o que não aconteceu. Hayden é a manifestação da curiosidade e reflexão humana. Em meio a uma sociedade quieta e acomodada, nós encontramos um jovem que nos faz refletir, observamos alguém que não tem medo de discutir assuntos polêmicos, nos deparamos com uma pessoa que tenta entender e discutir as questões mais difíceis. Esse personagem é maravilhoso pois não julga a opinião dos colegas, mas os faz pensar e refletir. Hayden funciona como uma espécie de filósofo mestre, que tenta ensinar seus discípulos o quanto é importante compreender o mundo e possuir opinião própria. Ele faz com que outros personagens discutam suas opiniões abertamente, não julga ninguém em sua forma de pensar, mas demonstra que as vezes o certo e verdadeiro pode também ser errado e duvidoso.
Apesar de ter amado todo o livro, existe um único detalhe que me incomodou ao longo da leitura. Senti muita falta de uma contextualização melhor trabalhada e explorada ao longo da história. Não me entendam mal, é fácil compreender o que aconteceu com a sociedade da época, assim como, com o passar do tempo, nós recebemos respostas para o que aconteceu no passado. Porém ao finalizar a leitura, nós ainda ficamos com muitas dúvidas e perguntas com relação ao contexto e ao passado daquela sociedade. Não pude deixar de sentir falta de maiores explicações, de elementos e detalhes melhores trabalhados, o que infelizmente não foi o caso nesse livro.

De um lado, as pessoas estavam assassinando médicos abortistas para proteger o direito à vida, enquanto do outro as pessoas estavam engravidando apenas para vender o tecido fetal. E todos estavam escolhendo seus líderes não pela capacidade de liderança, mas pela opinião que tinham sobre essa única questão.

O trabalho realizado pela Novo Conceito está outra vez impecável. Mais uma vez recebemos uma edição simples, porém muito bem elaborada e trabalhada. Bela em sua própria simplicidade. Já cansei de comentar por aqui que eu tenho uma queda por edições simples porém bem pensadas. Também gostaria de parabenizar a editora pela ótima revisão de texto. Não encontrei nenhum erro neste exemplar, o que me deixou muito feliz. Se existe algum erro ele passou despercebido.
Fragmentados é um livro maravilhoso, é o tipo de livro que todo amante de distopias tem o dever de ler. Mas também é um livro que todo o tipo de leitor deveria se arriscar e dar uma chance. A
criação de uma sociedade opressora e distópica possuí grande brilho na história, mas são as reflexões e discussões que o livro proporciona, que garantem a graça de toda a narrativa. Quando vi o livro pela primeira vez eu me encantei com a premissa, mas só após terminar a leitura percebi que estava frente a frente com um livro atual e maravilhoso, o autor realmente sabia o que estava fazendo, e agora é nosso dever conhecer essa história.

Já tem um trabalho bem definido para si, o de mudar o mundo e tudo mais, mas as coisas já estão em movimento; tudo o que ele tem a fazer é manter o ímpeto. E não precisa fazer isso sozinho.

  • Unwind
  • Autor: Neal Shusterman
  • Tradução: Camila Fernandes
  • Ano: 2007
  • Editora: Novo Conceito
  • Páginas: 317
  • Amazon

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