Existe uma lenda, um mito antigo que diz que cada leitor deste mundo, cada pessoa apaixonada pelo mundo da literatura, já nasceu destinada ao amor incondicional direcionado para uma certa editora. Não é difícil observar essa lenda se materializando na vida real, todos nós, se não passamos, vamos passar por isso. E uma vez em que os planetas se alinharem, em que os olhares forem trocados, em que o livro for posto nas mãos do leitor certo, não haverá volta. Eu sei que isso é verdade, pois encontrei a editora na qual posso despejar todo o meu amor! Mas o melhor de tudo, é que sou recompensada por isso a cada nova leitura, a cada novo lançamento, a cada edição maravilhosa disposta na minha estante. Quem me conhece sabe, meu amor é único e o favoritismo é verdadeiro.
Como não poderia ser diferente, mais uma vez fui recompensada. Mais uma vez provei para mim mesma que aquela lenda estava correta, e hoje, compartilho esse fato com todos os leitores que me conhecem. Mais uma vez encontrei uma obra mágica, uma edição impecável, uma revisão acertada e um trabalho de encher os olhos, de fazer qualquer leitor encontrar outra vez a magia que somente um bom livro pode trazer.

Mas lembre-se disso: uma criatura não pode ser totalmente afastada de sua natureza primordial.

Uma obra mágica é capaz de nos fisgar, de nos encantar logo nas primeiras viradas de página, nas primeiras palavras lidas, e assim acontece em Golem e o Gênio. Através do pedido peculiar de um homem comum, encontramos nossa primeira personagem principal. Encomendada para um feiticeiro, colocada dentro de uma caixa e armazenada no depósito de um navio que vagava rumo a uma cidade prometida, conhecida por Nova Iorque, iremos conhecer nossa adorável golem. Essa criatura feita de barro, moldada para se assemelhar ao máximo às características humanas, é acordada, ganha vida ainda dentro do navio, porém sua breve vida já lhe mostra as provações que deverá enfrentar.

Todo golem é criado para seguir um mestre, para atender à seus desejos, porém o mestre da golem morre logo após acordá-la, deixando a pobre criatura insegura, sem qualquer noção de como a sociedade, as pessoas realmente são. Por não possuir um mestre, a golem adquire a habilidade de ouvir todos os desejos, todos os anseios daqueles que estão à sua volta. Essa habilidade acaba se mostrando uma maldição, já que indefesa e despreparada ela não sabe a quem atender, em quem confiar. Desembarcando em Nova Iorque, caminhando pelas ruas desconhecidas e cheias de estranhos com os mais diversos desejos a golem se encontra com a sorte. Um velho rabi a reconhece, entende a sua natureza, e deseja o seu bem, e assim toma para si a responsabilidade de cuidar, proteger, ensinar e olhar pela golem. Ele lhe dá um nome, assim ela passa a se chamar Chava, e com sua ajuda a golem inicia sua jornada.
Do outro lado da história, na outra ponta do livro, nós conhecemos o segundo personagem principal. Uma encomenda é feita à um ferreiro que vive na Pequena Síria de Nova Iorque, uma antiga e bela jarra de cobre, passada de mãe para filha, merece ter seus amaçados removidos. O bom ferreiro não imaginava que ao lidar com a jarra iria libertar um djim amaldiçoado. Feito do mais puro fogo, uma chama viva e pulsante cheia de magia foi amaldiçoada e aprisionada naquela velha jarra. O djim, que sempre foi capaz de adquirir a forma que lhe fosse mais conveniente, foi então aprisionado a forma humana, ele não consegue se lembrar de nada, não sabe como foi capturado, como pode ser tão descuidado, mas percebe que seus poderes, embora reduzidos, ainda estão lá.

Mas amor baseado apenas em solidão e desejo não dura muito. Uma história compartilhada, tradição e valores unem duas pessoas de uma maneira muito mais completa que qualquer ato físico.

Com o tempo o djim se mostra um ótimo ajudante para o ferreiro, e assim, um faz o que pode para ajudar o outro. O djim recebe o nome de Ahmad, e conforme aprende e entende mais sobre o mundo humano em que se encontra, inicia sua jornada pelas ruas de Nova Iorque. Descobre locais suspeitos, conhece pessoas dos mais diversos níveis sociais, e devido às suas andanças pela cidade, seu destino acaba por se cruzar com o de uma certa golem.
Golem e o Gênio é uma obra fantástica, porém muito mais do que outra obra de fantasia, esse livro nos mostra que quando enxergamos a magia em nosso mundo, tudo ganha mais cor. A magia permeia cada etapa da obra, ela nos encanta, nos agrada, nos faz suspirar. A magia une nossos personagens principais, mas também é essa magia que nos mostra o quanto a realidade também pode ser especial. Os acontecimentos são mesclados. As personalidades são reais, facilmente percebidas em nosso cotidiano. O fato de Chava ser tão responsável enquanto Ahmad busca tudo sem restrições e sem pensar nas consequências nos faz lembrar de nós mesmos, ou daqueles que conhecemos. O djim é livre, possuí uma alma que almeja a libertação total, a golem, em meio a tantos desejos não respondidos, conhece a espécie humana, e nos mostra quem somos, mas na mesma moeda, dos seres únicos e mágicos são tão humanos quanto qualquer um de nós.

Você chega aqui deixando sabe-se lá o que em seu rastro e depois despreza os humanos por pensarem nas consequências. Enquanto isso, eu tenho de ouvir cada Eu gostaria de não ter feito aquilo e O que vai ser de mim agora! É egoísta, negligente e indesculpável.

Helene Wecker é uma fada da escrita. Cada detalhe, cada paisagem, cada cenário, cada personagem se materializa aos nossos olhos, se transforma em nossa frente. E como se não bastasse esse brilhantismo, essa graça de poder ver o que os personagens viram, de poder sentir o que estão sentindo, cada pedacinho do que nos é mostrado está intimamente conectado a trama. Nada acontece por acaso, nenhum personagem surge sem propósito, tudo possuí significado e motivos, e com tantos detalhes, com tanta magia acontecendo a nossa volta, se torna impossível deixar de lado a magia.
E como a fada incrível que é, Helene Wecker também nos dá uma lição sobre pesquisa dentro de livros de fantasia. A pesquisa não é mera auxiliar para se contar uma história, ela é viva, pulsa, e assim como tudo na obra, nos apresenta a magia do mundo. Invés de simplesmente apresentar informações ao longo da narrativa, a autora nos encanta com um contexto, com uma pesquisa que não é percebida como tal, que ganha a aura de história. A pesquisa se insere a tudo, e o todo é o que transforma cada pedacinho da obra especial!
Golem e o Gênio é uma faísca brilhando no meio de uma imensidão de livros similares, é aquela sensação pulsante de que podemos ser livres se quisermos. É um ser de barro tentando encontrar o equilíbrio entre o que se deve ser, os desejos dos outros e a busca pela sua própria história. É aquela obra que te ensina, que te mostra a humanidade, que se utiliza de misticismos, tradições e magia para te ensinar que a vida, real e falha como ela é, também é única, bela e cheia de magia. Tudo o que precisamos, em toda a nossa jornada neste mundo, é encontrar o equilíbrio,
conhecer a nós mesmos e principalmente, saber que a nossa natureza é aquilo que nos coloca no caminho certo, e nos ensina quem realmente somos.

Ele pensou que, se pudesse escolher um instante que seria levado consigo para a garrafa, um instante para reviver para sempre, talvez escolhesse este: a cidade a passar, e a mulher ao seu lado.

  • The Golem and the Jinni
  • Autor: Helene Wecker
  • Tradução: Cláudia Guimarães
  • Ano: 2013
  • Editora: Darkside Books
  • Páginas: 514
  • Amazon

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