Não é novidade para aqueles que me acompanham a mais tempo, que tenho uma queda enorme, um favoritismo absurdo e uma paixão avassaladora por William Shakespeare! Porém, este amor pela obra do dramaturgo vai muito além de suas peças ou sonetos, ele se expande para as adaptações cinematográficas, as séries inspiradas em suas narrativas mais famosas (como essa aqui), chegando até mesmo àquelas obras literárias que possuem reflexos do mundo que esse maravilhoso escritor deixou para trás.
Foi por causa de todo o meu amor, meu fascínio pela obra do dramaturgo, pela promessa de uma história clássica explorada através de um prisma moderno, foi pela presença de um personagem principal inusitado, que decidi me aventurar pela trama de Enclausurado. Hoje, após muito refletir e relembrar, compartilho com vocês meus pensamentos sobre a mais nova obra de Ian McEwan.

Alojado onde estou, sem nada para fazer a não ser crescer meu corpo e minha mente, absorvo tudo, até mesmo as idiotices – que é o que não falta.

Enclausurado irá se utilizar de uma trama clássica. Talvez uma das mais apropriadas e reinterpretadas, repaginadas e admiradas, àquela que deu origem a tantas obras fascinantes, muitas das quais se tornaram favoritas dessa, nada suspeita, pessoa que vos fala. Encontraremos aqui o roteiro de Hamlet, porém desta vez, com um olhar diferenciado e até certo ponto, repaginado. Sendo assim, não se trata de um spoiler quando digo que a narrativa irá girar em torno da estratégia pensada por Trudy e Claude para assassinar John, ex-marido de Trudy, irmão de Claude e pai do filho que Trudy carrega em seu ventre.
A diferença desta obra para o original, escrito por William Shakespeare, está no fato de que nosso narrador e personagem principal é um feto esperando por nascer. Desta forma, se torna praticamente impossível a busca por vingança, já que estamos falando de um personagem que sequer nasceu. Mas onde a narrativa se inspira em Hamlet para criar sua história principal, ela conquista aspectos nunca antes vistos, devido a sua abordagem e foco diferenciados.
Um bebê de quase nove meses, preso dentro da barriga de sua mãe, se transforma em narrador e personagem principal. Sua amada mãe, aquela que lhe garante o dom da vida, a sobrevivência até o momento do nascimento, conspira e planeja o assassinato de seu próprio pai, pai este que provavelmente nunca chegará a conhecer. É através das percepções desse futuro ser humano, de seus pensamentos e reflexões, do que ele pode compreender através de sua posição privilegiada e ao mesmo tempo debilitada, através de tudo aquilo que acontece no mundo exterior que nos inserimos na narrativa e acompanhamos o desenrolar dos fatos. Porém a beleza e o fascínio da obra se encontra nos detalhes, nas pequenas coisas que somente um feto poderia proporcionar.

Mas os não nascidos são estoicos, têm um semblante sério de Budas submersos, sem expressão. Ao contrário dos bebês chorões, que pertencem a uma casta inferior, aceitamos o fato de que as lágrimas fazem parte da natureza das coisas.

Muito mais do que observar uma trama antiga sob novo prima, uma história repaginada e transportada para outro tempo e espaço, Enclausurado altera o foco da história que lhe deu origem. Onde Hamlet apresenta a busca pela vingança, um filho que perde o pai, a tortura de um ser humano tomado pela obrigação, rancor e vontade própria, aqui encontramos a contextualização dos assassinos, as motivações mesquinhas e absurdas, os pensamentos de um filho que ainda não conhece o mundo. Onde Hamlet conquista o leitor pela nobreza, pela existência de um personagem único que deve honrar a morte de seu pai, Enclausurado nos mostra o outro lado da moeda, com seu personagem impotente, dois amantes terríveis e a busca por dinheiro.
Após tudo o que já destaquei, arrisco-me ao dizer que o trunfo deste livro está na estratégia inusitada e mais do que acertada de se utilizar um feto como personagem principal. Somente com o contato direto com o livro se faz possível entender as possibilidades que essa estratégia garante, as maravilhas que este tipo de narrador proporciona. Através de um ser humano que ainda não nasceu, Ian McEwan é capaz de refletir sobre a sociedade atual, inserir críticas à nossos modelos econômicos, nossas guerras sem sentido, nossos pensamentos fundados em perspectivas falhas do mundo em movimento. Através do olhar de alguém que observa o mundo de “fora”, percebemos a liberdade alcançada e as possibilidades adquiridas. Por não viver, diretamente, em nosso mundo, por não enfrentar as mais terríveis e difíceis situações, o ser que está por nascer possuí a vantagem de refletir e criticar nossos erros e omissões, e em meu humilde olhar, essa estratégia não têm preço!

Se os corpos, as mentes e os destinos humanos são tão complexos, se temos mais liberdade do que qualquer outro mamífero, porque limitar o espectro de possibilidades?

Apesar de todos os pontos positivos, das maravilhas que encontrei nessa narrativa, do encanto que tive por seu narrador, não posso negar que a obra possuí momentos em que questionamos o que está sendo feito em matéria de direcionamento e escrita. Enclausurado apresenta, em mais de um momento, cenas desnecessárias, situações que não acrescentam em nada a trama. Mas onde existem erros existem muito mais acertos, e são esses acertos que nos encantam. O novo olhar, a estratégia inusitada e maravilhosa, as críticas e reflexões, cada detalhe maravilhoso inserido na trama tornam a obra uma experiência interessante. Quando se tem apenas o espaço restrito de uma casca de noz, as impressões vindas de um mundo desconhecido, e a coragem de mesmo assim seguir em frente, é possível encontrar a maior mensagem de todas, e esta, o autor soube explorar muito bem.

  • Nutshell
  • Autor: Ian McEwan
  • Tradução: Jorio Dauster
  • Ano: 2016
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 200
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