Lembro de uma época – muito antes da popularização dos filmes de super-heróis – em que uma garotinha não se deixava iludir por nomes como Batman ou Homem Aranha. Por motivos desconhecidos, na mente em desenvolvimento de uma criança, uma boa história de super-heróis só poderia existir se estivesse contextualizada no universo de X-Men. E assim ela passou bons anos de sua vida acompanhando as aventuras, desafios e perdas de algo muito maior do que um grupo que não se encaixava. Hoje, sou capaz de perceber as nuances dessa franquia; todas as vezes com que refletiu nosso mundo e nossos preconceitos dentro de uma história fictícia; quando explorou, de maneira impecável, os mais diversos tipos humanos, me via assombrada, pois sabia que tudo aquilo, embora exposto em um desenho animado, uma história em quadrinhos ou em formato de filmes, possuía toques de verdade.

Mas, para além da identificação que uma menininha sentia com um grupo deslocado da sociedade, mais do que compreender as pequenas grandes mensagens escondidas em cada detalhe deste universo, hoje me foi dada a oportunidade de confirmar tudo o que um dia desejei, e em mesma medida, temi. Com o coração pesado, olhos embaçados e a falta que sei que dois personagens especiais farão, venho por meio desta – com toda a admiração de uma fã, tristeza de uma criança que perde um amigo e orgulho de alguém que cresceu e foi moldada por esta história – compartilhar algumas palavras sobre uma adaptação que fez jus às adaptações de histórias em quadrinhos, é sensível e cruel, terrivelmente bela e fecha, de forma impecável, o arco de nosso querido Wolverine.

Desde 2000, quando o primeiro filme de X-Men foi lançado, já sabíamos da importância de um mutante em especial. Desde então, Logan foi se destacando, transformando-se em uma peça chave na história das adaptações da franquia. Desde sua primeira aparição, o personagem vem confrontando o mesmo impasse, aquele que o moldou durante todos estes anos. Recusar-se em fazer parte de uma família era muito mais fácil do que enfrentar a perda depois.Em Logan, avançaremos para 2029 e a humanidade completa 25 anos desde o nascimento do último mutante. Estes encontram-se praticamente extintos, os poucos restantes, lutam pela sobrevivência em uma sociedade que transformou sua memória em histórias em quadrinhos e produto comercial, e sua luta em esquecimento. Logan, encara a passagem do tempo através da perspectiva do álcool, fecha-se cada vez mais profundamente em seus próprios pesadelos, arrependimentos e fantasmas. Encara seus dias como uma tarefa, quase uma obrigação, de manter vivo aquele que um dia acreditou em seu potencial.

Sua habilidade de cura demora para agir. Suas garras forçam caminho em sua pele e não possuem a mesma força e agilidade de antes. Ele se vê enfraquecido e destrói a si mesmo dia após dia. O mundo já não possuí a mesma luz. Seu dinheiro e trabalho é destinado para a compra de remédios para Charles Xavier. O tempo também deixou sua marca no professor, que sofre de terríveis convulsões capazes de ampliar e descontrolar seus poderes. Para seu próprio bem, e de qualquer um que esteja próximo de nosso adorado mentor, ele vive dentro de uma antiga caixa de água, sozinho e distante, no meio do deserto na fronteira entre Estados Unidos e México. O mundo dos mutantes se resume a sobrevivência, e será através de um novo olhar sobre o prisma da sobrevivência que todo o contexto dos personagens irá mudar.

A humanidade continua avançando, evoluindo, aprimorando de forma impecável seu lado sombrio. Grandes empresas, sabiamente apropriam-se do material genético de mutantes, vivos ou mortos, para criar novas armas de guerra, armas que pensam, sentem e existem sob a forma de crianças.

Com o intuito de proteger uma garotinha de onze anos, Logan recebe a oferta de uma misteriosa mulher que trabalhou como enfermeira na mesma empresa em que crianças viram armas. Agora ela oferece uma grande quantia em dinheiro para que ele conduza a menina até a Dakota do Norte, onde estará a salvo, juntamente com outros iguais a ela, dos caçadores que os procuram e que os encaram como uma experiência que saiu do controle. A proposta que a princípio era recusável, se transforma em algo crucial quando se torna impossível fugir daqueles que buscam por X-23, a garotinha perdida, experimento que deu certo, uma mutante que possui as mesmas habilidades de Logan e também sua personalidade fechada e implacável. Agora, Logan, Charles e Laura seguem em busca de algo que pode significar a sobrevivência da garota e de das outras crianças que tiveram a mesma sorte que ela.

É difícil escrever estas palavras e não desejar ser capaz de demonstrar toda a carga dramática do filme, o que ele nos faz sentir, os pensamentos que surgem semanas após ter saído da sala do cinema com a certeza de que nada mais seria como antes. Logan vai além de um simples filme de super-heróis, ultrapassando até mesmo as diversas reflexões sobre diferenças, inclusão e exclusão que outras histórias da franquia X-Men já nos apresentaram.

Em Logan, finalmente, entendemos, por que Wolverine sempre se privou dos sentimentos e de que maneira sempre falhou miseravelmente nisso. Cada fragmento de perda, cada rachadura que todos estes anos abriram na alma desse personagem, em seu último filme está exposto. Logan está no seu limite mental e físico. Seus dias de glória não existem mais, estão em decadência. Ele encara a essência de Wolverine e nos apresenta um personagem verdadeiro, fiel, cativante. Toda a carga emocional, o peso que carrega nos ombros, os sofrimentos que causou ou presenciou, as cicatrizes emocionais e físicas estão visíveis e se fazem sentir em cada momento da narrativa. Até mesmo as inseguranças do personagem são apresentadas de maneira sutil, porém, deixando claro que aqui encontramos muito mais do que um personagem fechado no velho estilo “bad boy”.

Hugh Jackman nos apresenta uma atuação emocionante, honesta, equilibrada entre o lado violento e sensível do personagem, porém, ao contracenar com Dafne Keen, percebemos as dimensões, similaridades e força destes dois personagens. Dafne é impecável! Suas expressões faciais nos assustam, sua força nos encanta, as cenas em que a garota age como uma versão infantil de Logan nos alegram, e nos momentos mais sensíveis, ela acaba com nossos corações.

O ar melancólico e sofrido é passado, não só na fotografia do filme, que é um espelho do contexto, mas também no trabalho de maquiagem impecável, principalmente, tratando-se da aparência de Logan e Xavier. Além disso, o filme trabalha bem as cenas de luta, a violência existe, mas é justificada. Ouso dizer ainda que, a fórmula de sensibilidade, contextualização da sociedade e momentos leves de comédia não faria sentido caso a violência não fosse tão bem trabalhada e exposta, como foi aqui. É ela quem arremata, quem torna os acontecimentos ainda mais impactantes, quem nos faz tremer e desejar que fosse possível voltar atrás.

Logan não é apenas um adeus ao personagem que lhe dá o nome, mas também é o adeus de Patrick, ambos os atores contribuíram por 15 anos para uma franquia que atingiu mais de uma geração, apostaram num formato pouco valorizado e permaneceram nele até, finalmente, os verem como febre mundial. Um agradecimento especial para estes atores que dedicaram partes de suas vidas para darem vida a personagens que estarão para sempre eternizados a suas imagens.

Para além de todas as reflexões sobre a natureza humana, sobre os rumos da sociedade, a profundidade de um personagem tão querido, gostaria de pensar em Logan – e observo o filme, em seu panorama geral – por todo o seu legado. O legado deixado para as próximas gerações, o exemplo de força, coragem e principalmente, sacrifício. A escolha pela humanidade, mesmo que se faça necessário trilhar o caminho mais árduo. Todos esses elementos ganham força em Logan. Por saber que essa foi a última vez que encontramos nosso querido mutante, e apesar do olhar embaçado e do coração pesado, não poderia estar mais feliz ao observar o legado do personagem sendo apresentado em um filme que, como poucos, foi capaz de emocionar e dar vida a um ícone das histórias em quadrinhos.Na timeline do mundo Marvel, Logan cativou seu lugar. Muita coisa há de acontecer entre X-Men Apocalipse e Logan, mas o filme também garante, não só a consolidação definitiva da franquia, como também garante o futuro da saga e também dos novos mutantes. Para todos que se permitirem assistir Logan, preparem-se para uma despedida meio doce, meio amarga, um filme onde heróis com superpoderes trazem questionamentos e sentimentos reais sobre a natureza humana. No fim, tudo se trata de escolhas e consequências e esta realidade está bem viva em Logan.

  • Logan
  • Lançamento: 2017
  • Com: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Dafne Keen
  • Gênero: Ação, Drama
  • Direção: James Mangold

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