A curiosidade, racionalidade e a criatividade sempre estiveram presentes na mente e evolução do homem. Não fossem por estas três características, provável seria que muitos dos avanços da atualidade, das revoluções do passado, ou do pensamento do presente não existissem na forma como os conhecemos hoje. Porém, o que para muitos pode ser compreendido como o diferencial, a salvação da humanidade, também pode ser classificado como nossa maldição e ruína.
Desde o fim da Idade Média a humanidade, por muito ligada, presa aos costumes e mentalidade da Igreja, se volta para a razão, para as ciências, para um método rigoroso de comprovação e observação da realidade e segredos do mundo. A ciência, durante muito tempo foi compreendida como a redentora da humanidade, aquela capaz de resolver todos os erros, descobrir todos os mistérios, reparar cada defeito da natureza e do próprio ser humano. A fé cega, os avanços desenfreados, a falta de reflexão sobre ações, escolhas e nossa posição no mundo foram responsáveis por trazer as mais terríveis realidades, porém, nas mais diversas épocas, mentes brilhantes foram capazes de enxergar através da neblina e dizer onde aquele caminho levaria. Este, é apenas um deles.

A curiosidade, a pesquisa séria para aprender as leis ocultas da natureza, a alegria semelhante ao êxtase à medida que se revelavam para mim, acham-se entre as primeiras sensações de que me recordo.

Nascido em uma família importante, rica e amorosa, Victor Frankenstein passou a infância conhecendo os mais diversos povos e culturas, alterando sua residência conforme a vontade dos pais. Quando sua família finalmente fixa raízes, decide faze-lo no solo fértil e belo da Suíça. Desde cedo Victor Frankenstein recebeu educação, manteve uma relação direta com livros das mais diversas áreas do conhecimento, esteve em contato com a natureza e usufruiu das maravilhas que a vida em família pode proporcionar. Porém, quando a idade para que sua educação avançasse e se expandisse surge no horizonte, ele é enviado para a universidade, para os ares de uma nova cidade e uma vez lá, sofrerá as consequências de seus próprios atos.
O jovem será apresentado a novas ideias, formas de ver o mundo, descobertas no campo das ciências naturais, deixando-se maravilhar pela grandeza de tudo. Ele também irá usufruir do prestígio conquistado por seus avanços em pesquisas, o que irá ajudar a construir sua personalidade orgulhosa. Pouco a pouco o personagem irá se direcionar para o campo de estudo do corpo humano, para as reflexões sobre a vida e a morte, sobre qual o segredo capaz de acender a centelha da vida. Sua ânsia por descobrir os limites entre a vida e a morte direcionarão o rapaz ao projeto de sua vida.
Durante longo período ele irá criar um corpo colossal, uma união grotesca de diversos membros antes pertencentes aos mais distintos componentes da sociedade da época. O quebra cabeça, uma vez montado, irá necessitar de nada mais do que um último movimento, uma última ação para se ver completo. Através da utilização de uma grande carga de energia elétrica, aquela criatura,
antes inanimada, ganhará vida. Ao observar sua própria criação, a ruína será lançada sobre o jovem e brilhante Frankenstein. Sua vida se transformará em terror, e ao dar as costas a vida que criou, por não estar devidamente preparado para aquilo que tanto almejava, irá descobrir que as consequências por seus atos, o terror, fruto de sua fé cega e falta de reflexão, não podem receber outro culpado, se não ele mesmo.

As trevas não tinham efeito sobre minha imaginação, e o adro de uma igreja era para mim tão somente o receptáculo de corpos privados de vida, que, antes fonte de beleza e vigor, tornaram-se alimento para os vermes.

Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, é uma metáfora para a fé cega na ciência, para a busca desenfreada por avanços na ciência, na técnica, na tecnologia. Trata-se de uma triste, cruel e aterrorizante história sobre a ânsia por descobrir os segredos da vida, da terra, do universo. Para além da visão de ciência como fonte de todas as respostas, também encontramos aqui reflexões sobre o que verdadeiramente é ser humano. Onde se finda a humanidade e onde se inicia um novo ser, um monstro ou demônio capaz de assombrar o futuro de todos aqueles que amamos ou que, um dia poderíamos vir a se tornar.
Victor Frankenstein, apesar de tentar nos confundir com suas palavras, com seus relatos sombrios e amargurados, é uma figura extremamente orgulhosa, arrogante, por vezes até mesmo monstruosa. Ao completar a obra de sua vida, aquilo que com muito afinco e paixão ousou estudar, o personagem se desespera, não está verdadeiramente preparado para as consequências de seus atos. Por vezes, em sua sina, chega a lançar a culpa nas mais diversas situações, acasos, estudiosos ou na própria criatura.
Enquanto o criador se afoga em mágoas, arrependimentos mínimos e afunda cada vez mais ao tentar reparar um erro cuja culpa cabe somente a si, a criatura vaga sozinha pelo mundo. O ser que ganha vida não possuí consciência de onde veio parar, não compreende a essência humana, se vê como uma espécie à parte, deslocada de toda a natureza. As fagulhas iniciais de bondade e amor logo serão esmagadas por experiências vividas, e por não possuir uma base, alguém a quem recorrer, um conselheiro, seus sentimentos transformam-se em raiva para aquele que o criou. Quando a criatura se transforma em monstro o criador vira vítima e ganha humanidade, porém a dualidade se mostra sempre que a criatura se mostra mais humana do que o criador, nos fazendo refletir sobre a essência da humanidade.

Quando percorro o catalogo medonho de meus crimes, não acredito ser a mesma criatura cujos pensamentos, certa vez, estavam repletos de visões sublimes e transcendentes da beleza e da excelência da bondade.

Frankenstein é um clássico da literatura, e um dos títulos a serem lançados pelo selo Medo Clássico da editora Darkside. Porém, muito além de uma história sombria e aterrorizante, esta também é uma narrativa reflexiva, um aviso para aqueles que ainda acreditam cegamente nos avanços da ciência e da tecnologia, além de uma análise profunda sobre a essência humana. A visão de Mary Shelley é atemporal, transpassa as barreiras de sua época, nos faz temer o futuro, as possibilidades, as consequências. Porém a centelha de vida desta criatura fantástica surge através das mãos habilidosas de todos aqueles que trouxeram essa edição para o catálogo da Darkside. Com a edição impecável, contos publicados pela autora, e outros extras, muito mais do que um clássico que todos deveriam ler, esta se torna também uma obra que todo leitor deveria possuir em sua coleção.
Muito mais do que um clássico do terror, a obra apresenta a linha tênue entre o surgimento de um monstro dentro da essência humana. E para todos aqueles que alguma vez refletiram sobre o mundo ou sobre si mesmos, desafio-os a dissecar a criatura!

  • Frankenstein, or, The Modern Prometheus
  • Autor: Mary Shelley
  • Tradução: Márcia Xavier de Brito
  • Ano: 2017
  • Editora: Darkside Books
  • Páginas: 304
  • Amazon

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