Engana-se quem pensa que a Suécia, lar de um dos meus autores preferidos, criador da melhor personagem feminina que já tive a chance de encontrar em muito tempo, também conhecido por Stieg Larsson, produziu única e simplesmente uma das melhores séries já publicadas.Esse país frio e maravilhoso, querido por todos os livros escritos, além é claro, daqueles que ainda serão publicados, é também o lar de autores criativos, cruéis e dolorosamente realistas. A Suécia, apesar de ainda não ter me apresentado toda sua sede de sangue, vingança e justiça, se tornou um país no qual sei que posso contar quando preciso de histórias misteriosas, repletas de personagens complexos e bem construídos, com tramas interligadas a uma realidade que muitas vezes insistimos em não enxergar, e, porque não, com um número de páginas considerável.

Quando A Garota Corvo surgiu no mercado literário brasileiro, com toda sua promessa de uma trama instigante e, misteriosamente comparada a Trilogia Millennium, esperava encontrar mais uma história maravilhosa de suspense e segredos enterrados, porém, o que vi nas páginas desse livro vai além de tudo o que poderia imaginar. Apesar de seus pequenos furos, de alguns  deslizes que mencionarei ao longo da resenha, a história é agradavelmente realista, além de adoravelmente cruel, e como tantos outros livros, merece a recomendação.
Durante mais um dia comum e movimentado em que a população segue para os mais diversos cantos da cidade sem notar o que acontece a sua volta, uma mulher desconhecida realiza uma quantidade considerável de reformas no comodo antes sem utilidade de seu apartamento. Ela compra materiais específicos, como isolamento acústico e material acolchoado, escolhendo a dedo e seguindo a risca as instruções para suas necessidades peculiares. Mais tarde, aquilo que um dia poderia ter sido um quarto qualquer, se transforma em uma sala segura, distante de qualquer ligação com o exterior, acolchoada, a prova de som, com apenas uma entrada e saída.Na mesma cidade, uma criança desconhecida, proveniente de um país distante, arrisca uma viagem incerta em busca de um futuro melhor para si, desaparecendo assim que coloca os pés no abrigo para crianças imigrantes da cidade. Em outro ponto geográfico da fria Estocolmo, uma sacola é delicadamente depositada próximo ao campus de uma universidade. Em breve a polícia irá descobrir o corpo de uma criança, os horrores que presenciou e enfrentou com o único objetivo de manter a vida por mais alguns segundos. Os legistas analisarão a forma como um assassino sem nome transformou o corpo de um ser inocente em uma obra de arte embalsamada, mantida para todo o tempo em sua expressão de puro terror.

A policial Jeanette Kihlberg, em toda sua carreira, não poderia imaginar que, justamente no dia em que seu antigo Audi decide apresentar o que parecem ser os últimos suspiros, seria arremessada para a investigação de uma quantidade absurda de assassinatos brutais. Da mesma forma,  ela não poderia imaginar que, as crianças encontradas, abandonadas como objetos descartáveis, possuiriam uma conexão com o assassinato de adultos comuns, igualmente assassinados de maneira brutal, aparentemente conectados por seu passado repleto de segredos e ligações complexas entre si. Enquanto Jeanette inicia sua investigação, descobre segredos enterrados e corpos e mais corpos de indivíduos conectados, a psicóloga Sofia Zetterlund terá sua vida intimamente interligada a uma investigação que, a princípio, não possuí qualquer tipo de ligação com sua vida ou seu passado. Porém, mais cedo ou mais tarde, os fantasmas enterrados voltam para nos assombrar, e, o que poderiam ser eventos desconexos, crimes cruéis e situações que deixaram suas marcas na vida de uma mulher, podem apresentar um contexto mais perturbador do que algum dia poderíamos imaginar.
Com o peso de autores renomados e histórias escritas antes deles em suas costas, Jerker Eriksson e Hakan Axlander Sundquist, nos apresentam uma maravilhosa narrativa policial. Repleta de mistérios, suspense, informação, crítica social e, como não poderia faltar, eventos perturbadores, a dupla é capaz de nos arrastar para uma sucessão de eventos confusos e caóticos, capazes de se unir em uma ampla trama ficção e realidade, fazendo com que o leitor se questione a todo momento até que ponto os eventos não poderiam acontecer em nossas próprias vidas. As 580 páginas  não devem assustar os leitores que buscam desbravar essa história. O que encontramos aqui, mesmo com suas breves exceções, é uma série de situações interligadas por uma narrativa intrincada, adoravelmente fora de cronologia, misteriosamente real em toda sua brutalidade e conexão ao mundo no qual vivemos. E, como se não bastasse, para além dos assassinatos e da capacidade de inserir problemas reais, os autores foram capazes de, com toda sua sutileza, analise crítica e conhecimento, inserir um debate atual da forma como muitas autoras, do gênero feminino, ainda não conseguiram efetivar em seus livros.
A discussão sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea, os desafios que ainda enfrentamos, a luta pelo reconhecimento, contra padrões estabelecidos séculos atrás, as visões misóginas que prevalecem em ambientes e profissões estritamente masculinos, a própria força da mulher é apresentada nesse livro como não via a muito tempo.Enquanto obras de autoras – não generalizando, mas levando em consideração algumas experiências recentes – buscam entrar no debate feminista, na possível conscientização acerca de uma temática, e de problemas que datam de períodos mais antigos que a Idade Média, dois autores suecos, em toda sua capacidade criativa, seu posicionamento e liberdade, entram fundo nos assuntos que, em casos pontuais, uma vez que não podemos generalizar, falhamos em apresentar. Aqui encontramos homens explorando uma temática atual, chocando com situações reais, mesmo que expostas em uma trama fictícia. Muito mais do que chamar a atenção e depois perder a chance de se aprofundar, os autores vão além, inserindo a realidade sombria não apenas de mulheres que buscam melhores salários, mas daquelas que nascem e crescem em uma família onde a mãe é uma figura cega, indiferente ou “fraca” demais para sair da situação em que se encontra. Encontraremos casos em que o pai, um monstro protegido por lei, por outros homens como ele, são os responsáveis pelas mulheres que tiveram sua liberdade arrancada, daquelas mulheres que, por muito tempo encontraram nos homens seus maiores inimigos.

O abuso, físico e psicológico de mulheres e crianças, o tráfico infantil, a perda da liberdade, a falta de proteção oferecida pelos governos, os sistemas falhos e a incredulidade com que as vítimas são encaradas, são apenas alguns dos temas aqui presentes. Muito mais do que entreter com uma história policial instigante, a obra faz o leitor refletir sobre o mundo em que vive e todas as tramas reais que muitas vezes não são capazes de chegar a nossos ouvidos. Como destaque, ainda inserem, em mais de um comentário, o Brasil como país ligado a atrocidades e eventos capazes de tirar o sono de qualquer pessoa que se proponha a refletir sobre a possível veracidade do que aqui encontramos.
Onde a crítica social, o posicionamento e aprofundamento ocorre de maneira esplendorosa, a narrativa também apresenta furos. Não posso dizer que trata-se de algo capaz de estragar a experiência do leitor, são coisas simples, pequenas, que transformam-se em pequenos incômodos quando encaradas por alguém que espera muito de livros como esse. Além disso, conhecendo a história, compreendendo a direção tomada pelos autores, e admitindo o final aqui apresentado, esperava maior zelo dos autores ao excluírem passagens que não agregam em nada a trama. 50 páginas poderiam dar lugar a maior contextualização de elementos importantes para a história, personagens cuja ação muda o rumo da trama, mas que foram pobremente explorados, sem falar na possibilidade de melhor compreender os eventos finais.
A Garota Corvo é mais um presente da Suécia para o mundo literário, uma crítica social ferrenha ligada a uma narrativa misteriosa e instigante, capaz de conquistar aqueles leitores ansiosos por algo fora do padrão dos mais vendidos ou das apostas seguras. Os autores claramente bebem da fonte de Stieg Larsson, mas deixarei essa discussão para o futuro, mostrando posicionamento e qualidade em sua obra. Seria impossível abordar a complexidade de temas e ligações presente nessa história, mas, como a apaixonada por literatura sueca que sou, só tenho a agradecer a Companhia das Letras por mais uma obra fascinante, e a prova de que, autores também são capazes de fazer seu papel social e chamar a atenção para discussões atuais.

Vídeo de Discussão

  • Krakflickan, Hungerelden e Pythians Anvisningar
  • Autor: Erik Axl Sund
  • Tradução: Carlos Rabelo
  • Ano: 2017
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 580
  • Amazon

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