A manhã do dia 27 de janeiro de 2013 é daquelas em que você se lembra exatamente o que estava fazendo, se for gaúcho pelo menos, como no 11 de setembro ou em alguma outra data marcante por alguma tragédia histórica. Esta era a noite do segundo incêndio com mais vítimas na história do Brasil, era a noite da tragédia na Boate Kiss.
Naquela manhã eu estava em casa com meu filho recém-nascido e minha esposa, não liguei a TV quando acordei por algum motivo qualquer da recente paternidade, uma troca de fraldas ou um colo para encerrar um choro, não me lembro exatamente. Lembro que recebi uma ligação de meu pai, que da sua fazenda via o noticiário nacional, um plantão permanente que tirava do ar até mesmo os programas tradicionais da Rede Globo. Nas rádios do estado era a única coisa da qual se falava, lembro que ele me disse “Viu o que aconteceu em Santa Maria? Mais de 50 mortos numa boate que pegou fogo.” Naquela noite trágica perdi 3 conhecidos, digo conhecidos por que não eram meus amigos próximos, mas a dor foi no estado inteiro, era uma das maiores tragédias do mundo, do Brasil e sem dúvida a maior de todos os tempos no Rio Grande do Sul.
Vidas jovens foram perdidas naquela noite, famílias perdiam filhos únicos ou até mesmo todos seus filhos, os corpos estavam em estados deploráveis ou somente pareciam dormir, já que as mortes ocorreram desde por queimaduras severas até apenas pela inalação da fumaça tóxica. O Rio Grande do Sul ainda não superou essa tragédia, leis foram criadas, mais cuidados estão ocorrendo para liberação de alvarás para todos estabelecimentos comerciais, mas o processo na justiça ainda corre, pessoas ainda não foram responsabilizadas como deveriam ser e a dor das famílias jamais acabará.
É sobre esse cenário que a jornalista Daniela Arbex escreve, escritora de dois livros maravilhosos e épicos, O Holocausto Brasileiro e Cova 312. O primeiro falando sobre a maneira como eram tratados pacientes em um hospício em Minas Gerais e o segundo sobre a ditadura militar, buscando a verdade por trás do corpo de um preso político, que tinha sua morte explicada como suicídio. Daniela conseguiu comprovar que a história era outra, alterando por fim o atestado de óbito do homem após várias décadas. Além disso, Daniela é premiada por diversas reportagens investigativas que já fez para os jornais nos quais trabalhou.
Em Todo Dia a Mesma Noite ela conta a história de alguns jovens mortos naquela noite e de suas famílias, desde como foram os últimos momentos com seus entes queridos vivos, passando pela angústia em descobrir as desencontradas notícias sobre a tragédia e todos percalços vividos até descobrir se o nome deles constavam na lista dos sobreviventes ou na dos mortos. A autora termina seus capítulos falando sobre como essas famílias estão hoje em dia e o que fazem para superar essas perdas inestimáveis.
Daniela é uma baita jornalista, competentíssima, investigativa, faz um livro recheado de detalhes, informações e consegue passar para as páginas toda a emoção que seus personagens viveram. O leitor sente toda a emoção e é impossível não chorar enquanto lê cada relato. Gosto muito de livros que contam a história do nosso país e a tragédia da Boate Kiss é uma página importantíssima e ainda recente para nós. Comprei o livro buscando informações sobre o que realmente aconteceu naquela noite e não propriamente sobre as famílias ou sobre a vida de quem faleceu.
Com isso em mente, analisando o texto que li, o mesmo gerou algum tipo de debate aqui. Estaria Daniela se aproveitando da tragédia para ganhar dinheiro com a dor de uma cidade inteira? Chegou a se levantar a hipótese de ela escrever o livro somente se sua distribuição fosse gratuita, coisa que acho abominável, já que ela empregou seu tempo e trabalho para fazê-lo e precisa sim receber por isso. Mas acho muito válida a discussão, falar sobre uma grande tragédia e remexer na dor de tantas famílias é apelativo?
Sinceramente não vejo o livro desta forma, não acho que ela quis se promover em cima da história, até por que ela já tem a promoção que merece, é uma excelente jornalista, multipremiada na sua carreira e não precisaria sujeitar-se a esse tipo de trabalho, mas achei que determinadas coisas deixaram a desejar em um livro que deveria ser investigativo. Ela até fala sobre o processo que está correndo na justiça contra os donos da boate e possíveis responsáveis pela tragédia, como até cita o ex-prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, mas não vai afundo como nos seus outros dois livros. Ela não busca responsáveis, nem apresenta fatos investigativos que levem o leitor a chegar a sua própria conclusão.
O início do livro conta como ocorreu o incêndio, como ele se alastrou, mas não fala minuciosamente da estrutura e de quais foram os principais elementos que provocaram as mortes. Fala de como algumas vidas foram salvas, mas não apresenta os principais heróis que entravam e saiam da boate a todo momento, se arriscando, para salvar o maior número de vidas possíveis. Para mim, o maior exemplo de que faltou mais aprofundamento em certos elementos são as poucas fotos presentes e de uma qualidade bem baixa, dificultando a visualização do que está sendo mostrado.
Quando comprei o livro sabia o que ia encontrar nele e sabia que era, essencialmente, sobre histórias. Eu tinha acompanhado a polêmica sobre seu desenvolvimento e mesmo assim, ao fim acabei me decepcionando um pouco. Eu sabia que não seria tão imersivo como os demais, mas eu desejava isso dela, acho que ela poderia ser comparada à Ilana Casoy em seus outros livros, mas nesse não, nesse ela dá mais foco as mortes do que a investigação e isso me fez perder um pouco do gosto que estava pela escritora. Apesar disso o livro, ao que ele se propõe, é belo, os relatos são emocionantes, as histórias têm uma dinâmica perfeita e a sua narração é magnifica, desde o nome do livro que achei sensacional – e duvido que pudesse ser melhor -, até a sua capa e impressão são de um capricho que deixam outros tantos livros com inveja. O único “porém” da edição são mesmo as fotos, que realmente ficaram péssimas.
Como o primeiro livro que fala sobre o caso, vi o mesmo como uma homenagem e sei que ele não é mais profundo muito provavelmente pela dificuldade de colher depoimentos de quem restou, seja de algum sobrevivente, seja de famílias que não quiseram falar ou até das autoridades e dos acusados. Daniela teve um trabalho árduo de conseguir quem a ajudasse a remexer nessa ferida que está longe de ser cicatrizada. A obra podia ser melhor, mas ela chega muito além do que qualquer um já havia conseguido falar sobre a tragédia, e fatos assim, precisam ser remexidas para serem sanadas, as feridas precisam passar por procedimentos médicos para depois fecharem, elas não fecham se você as esconde-las.
Daniela está muito longe de ser uma oportunista, é uma das melhores jornalistas do país e faz um livro digno da sua capacidade, emocionante e cheio de baques para quem viveu de perto essa tragédia. Só ela conseguiu ser competente, deixando uma obra em tributo a alguns dos que se foram, contando um pouco das suas histórias. É exatamente isso que achei de Todo Dia a Mesma Noite, uma homenagem feita por alguém muito competente no que faz, contando algo que precisa ser contado e que precisa ficar gravado em todas as mídias, seja internet, televisão ou literatura.
Todo Dia a Mesma Noite é um livro pra saber mais sobre essa tragédia. É para você que não acompanhou tão de perto, quanto nós gaúchos, para você entender o que aconteceu naquela não tão distante noite, é para chorar, e muito, para homenagear quem se foi e principalmente, para que essa página triste não seja apagada da história do nosso país e que jamais aconteça novamente.

  • Todo Dia a Mesma Noite - A História Não Contada da Boate Kiss
  • Autor: Daniela Arbex
  • Ano: 2018
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 248
  • Amazon

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