Seria possível, talvez por meio da distância ofertada pela passagem do tempo ou de nossa capacidade de estabelecer uma visão retrospectiva para praticamente qualquer evento histórico, reconhecer o momento exato em que uma ideia nasce na mente de uma pessoa ou mesmo de uma multidão?
Quem imaginaria que, ao compartilhar nossos pensamentos, sentimentos, decepções e visões de mundo, ideias muito parecidas surgissem como uma enxurrada nas mentes de cada membro de uma comunidade? Poderíamos prever os direcionamentos e consequências que somente uma ideia pode causar no destino de toda uma população?
A Guerra da Síria encaminha-se para o fechamento de seu oitavo ano e, embora diversas ações tenham sido tomadas, tiros tenham sido disparados, bombas tenham explodido prédios de famílias que conheciam todo e cada um dos pequenos detalhes da vizinhança em que passaram os melhores momentos de suas vidas, o conflito não dá qualquer sinal de ser finalizado. Consequentemente, a contagem de mortos se eleva, corações são despedaçados, futuros são brutalmente destruídos e famílias inteiras fazem o melhor que podem para manter a segurança daqueles que mais amam.
Assim como tantos outros eventos que, juntos, compõem a sombria, curiosa, brilhante e assustadora trajetória humana, a Guerra da Síria apresenta em sua essência uma ideia, ou talvez um pensamento que, pouco a pouco, se expandiu e, unindo-se à histórias e contextos profundos, foi capaz de direcionar uma população inteira para consequências nunca antes imaginadas.


O que teve início com um movimento contrário a presidência de Bashar al-Assad, hoje, em sua complexidade intricada, pouco está ligado ao grupo rebelde que lhe deu origem, contando com aspectos políticos e econômicos voltados aos interesses de outros países, além de ideologias religiosas que ampliam o escopo de um conflito que, pelo bem de sua população, já deveria ter sido finalizado.
É em meio a complexidade de elementos, nuances de aspectos socioculturais, políticos, econômicos e ideológicos que surge o diário de uma criança que acompanhou o desenrolar de acontecimentos que sua experiência com o mundo não era capaz de explicar. Ela viu a atmosfera da cidade que conhecia e amava mudar drasticamente, observou as ruas movimentadas e repletas de cheiros deliciosos deixarem de vibrar, percebeu as construções, os espaços que costumava passear, perderem suas cores, viu um mundo seguro e alegre dar lugar ao vazio, tristeza e incerteza.
O Diário de Myriam, muito mais do que demonstrar as consequências do conflito para a população de Alepo; destacar as rachaduras nas construções que sofreram com explosões de bombas ou tiros de rifles e armamento pesado de guerra; indo além das perdas e sofrimento inegável que assola famílias e mais famílias; avançando para o fechamento de escolas e crescimento do número de feridos e desabrigados, ressalta e demonstra a humanidade em meio ao conflito. É o lado humano que prevalece quando bombas fazem tremer as paredes daquele apartamento que um dia Myriam chamou de lar, são os sentimentos presentes em todos e cada um de nós que transbordam pelas páginas de um diário que, em momento algum, reduz a realidade dos eventos que impactaram a vida de Myriam.
A humanidade inegável presente neste livro impacta o leitor, porém, é por meio de sua escrita sem rodeios, acessível e por vezes breve, que O Diário de Myriam estabelece um sentimento indestrutível de empatia. Seu valor reside na capacidade de ir além das visões e opiniões pré-concebidas, obscurecendo os posicionamentos de governos, bem como da própria mídia que, tantas e tantas vezes, ignora a humanidade de conflitos que são muito mais complexos do que parecem, não podendo ser resolvidos, simplesmente, com a distribuição de armas para os lados que partes interessadas acreditam ser o “correto”.
O Diário de Myriam destaca a visão, pensamentos e sentimentos de uma criança com relação a eventos que vão muito além de sua compreensão. Demonstra o aspecto humano que, como humanos que somos, muitas vezes ousamos ignorar. Ressalta o impacto da guerra na vida de famílias inteiras, impactando e permitindo ao leitor uma aproximação maior, não apenas com detalhes do conflito, mas com as vidas daqueles que estão diretamente conectados ao desenrolar de um evento que ainda não mostra sinais de finalização.

  • Le Journal de Myriam
  • Autor: Myriam Rawick e Philippe Lobjois
  • Tradução: Maria Clara Carneiro
  • Ano: 2018
  • Editora: Darkside Books
  • Páginas: 288
  • Amazon

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