O fascínio humano pelas possibilidades e promessas contidas no universo científico e tecnológico não pode, e nem deve ser categorizado como mero desafio ou maldição atual. Necessita ser percebido pelo caminho tortuoso e repleto de reviravoltas, percorrido desde os últimos suspiros do período que hoje conhecemos por Idade Média, quando homens ousaram voltar os olhos para todos e cada um dos elementos que compõem o mundo, buscando respostas para segredos que iam desde os mistérios da existência de minúsculos organismos até o movimento das estrelas.
Desde então consolidamos uma forma única e, por tantas e tantas vezes excludente, de pensar. Percebemos e desvendamos o mundo de forma lógica, racional e absurdamente cunhada no conhecimento matemático, físico, químico e biológico. A expansão dos limites do conhecido possibilitou descobertas incríveis que permitiram a cura e erradicação de doenças além do estabelecimento das leis que, acreditamos, regem uma parte do universo. Mas tudo isso também admitiu a maior exploração do universo natural, resultando no crescimento do poder destrutivo da humanidade.

Você orienta seus cérebros a produzir superfície e embalagem e, se eles não tomarem conta, seu mundo interior acaba se tornando a mesma coisa que o exterior. A superfície se torna o fundo […] A embalagem se torna o conteúdo. O vazio se torna o recheio.

Os quadros e catástrofes são mundialmente conhecidos. Criamos bombas atômicas, destruímos reservas inteiras, somos os principais responsáveis pela extinção das espécies de animais e plantas e, não seria surpresa alguma descobrir que todos aqueles sobreviventes se encontram confusos e perdidos em meio a tamanha manipulação e interferência humana. Mas somos curiosos, criativos e nosso olhar aguçado almeja pelo encontro com novas descobertas, novos conhecimentos que podem vir a transformar e reconfigurar toda a realidade como a conhecemos e, é por isso que mesmo em meio ao caos de nossa interferência, produzimos uma quantidade incomparável de aparatos, produtos e tecnologias capazes de manter o consumo e a ordem sócio econômica nos eixos.

Neste contexto, é completamente plausível que algum dia indivíduos abandonem seus aparelhos móveis para dependerem, única e exclusivamente, de pequenos computadores instalados nos centros nervosos de seus próprios corpos. Estes computadores, por sua vez, permitiriam que empresas analisassem sua personalidade, confeccionando propagandas que atendessem cada “necessidade”, o que, consequentemente, viria a elevar as taxas de venda. Da mesma forma, a base de dados coletados acerca das características de cada indivíduo, proporcionaria às escolas e universidades um método único e prévio de seleção de candidatos; possibilitaria que programas calculassem seu par perfeito com base em conceitos estritamente científicos; admitiria que empresas acessassem remotamente seu sistema, recolhendo dados sobre sua vida ou mesmo vindo a alugar seu corpo para campanhas publicitárias.
Se tudo o que foi dito não é assustador o bastante, imagine que uma única empresa tenha poder e controle sobre todos os elementos citados, sendo capaz de controlar quem você ama; aquilo que compra; quais serviços são mais indicados para cada pessoa; quando uma população deverá efetivar a próxima atualização de software, mantendo-se integrada ao sistema e hábil a acessar todos os elementos que compõem a sociedade. Quão assustador seria se esta mesma empresa realizasse testes genéticos, produzindo animais que nunca existiriam sem a cruel interferência científica, mas que você não pode se recusar a admirar ou mesmo comprar? Está é a LoveStar.

Este cenário fictício e, por vezes distópico, carregado de absurdo, consequências e reflexões, espanta e encanta o leitor, mas, com a mesma maestria, remete a realidade confusa e perturbadora em que vivemos, demonstrando, uma vez mais, que a ficção científica não se distancia do mundo e desafios reais. Indridi e Sigrid são dois jovens apaixonados, que veem seu mundo perfeito ameaçado quando são calculados para outras pessoas. Agora ambos precisam chegar a extremos para provarem seu amor, o que os coloca imediatamente em confronto contra o sistema, contra as Corporações LoveStar, que também encontra seu próprio desafio de encontrar o que poderá ser a última ideia no mundo.

Inspirado por clássicos da ficção científica, bem como distopias no nível do fantástico Admirável Mundo Novo, Andri Snaer Magnason interliga as características próprias dos gêneros literários aos desafios e contextos atuais. É a partir de seu conhecimento literário e do mundo em que vivemos, que o autor elabora uma narrativa cativante, surpreendente e fluida, que, como toda boa obra de ficção científica, encontra-se carregada de críticas. Estes são os elementos responsáveis por ampliar o horizonte de leitura, uma vez que aqui não nos deparamos com uma história livre de mensagens e pensamento crítico, mas sim, páginas de uma narrativa que, na mesma medida em que encanta e instiga o leitor, também permite que este reflita e compare situações e consequências, compreendendo que, por mais que se trate de uma obra de ficção, não estamos tão distantes assim de atingir o mesmo patamar.
É justamente por conta de tudo o que foi destacado, além de todas as reflexões, que LoveStar insere-se no panteão de obras que, para além de enredos, contextos, críticas sociais e habilidades de imaginar futuros possíveis, são responsáveis por semear a criticidade no leitor, fazendo-o perceber os erros, equívocos e consequências que somente a ação humana, baseada nos preceitos científico tecnológicos, seriam capazes de produzir. Com frescor e originalidade inseridos a características e elementos clássicos da ficção científica, esta obra, muito mais do indicação, torna-se leitura obrigatória para os apaixonados, mas também para aqueles que se veem refletindo sobre onde poderíamos chegar.

  • LoveStar
  • Autor: Andri Snaer Magnason
  • Tradução: Fábio Fernandes
  • Ano: 2018
  • Editora: Morro Branco
  • Páginas: 336
  • Amazon

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