Vox, da autora Christina Dalcher, é um alerta. Algo muito semelhante ao que autores já renomados, como Margaret Atwood e George Orwell, fizeram há anos, mas que hoje cai como uma luva na realidade política que vivemos.
Fazem poucos anos desde que um governo autoritário, religioso e conservador tomou o poder dos EUA. Com isso, as primeiras pessoas a perderem seus direitos foram as mulheres. Neste governo as mulheres só podem falar 100 palavras por dia, contadas através de um aparelho que fica localizo em seus pulsos. Caso a mulher exceda sua cota diária, a mesma é punida com uma descarga elétrica, que vai aumentando a cada nova punição. Além das mulheres, aqueles considerados não “puros” e que não seguem os fundamentos desse novo governo sofrem consequências duras, chegando até a campos de concentração.
Desde que isso aconteceu, a linguista, Dra. Jean McClellan, vem tentando lidar com a situação. Tem vezes que nada daquilo parece real, mas tudo se mostra esmagador quando ela percebe a própria filha sofrendo as primeiras consequências da censura. Impedidas de trabalhar, neste governo as mulheres tem apenas um propósito, servir o lar. Porém, a nova realidade de Jean parece lhe dar sorrir quando sua pesquisa a respeito do funcionamento do cérebro, considerada promissora antes do novo poder, parece ganhar atenção do presidente. Sendo assim, Jean usará desta oportunidade para ganhar mais voz, lutar por sua filha e todas as mulheres silenciadas.

É um choque perturbador quando percebemos que a história de Jean, de uma personagem fictícia, tem uma certa proximidade com a nossa própria realidade. A distopia criada por Christina Dalcher é algo possível de acontecer na não-ficção, de forma rápida, assim como no livro. Perceber isso ao longo da leitura é preocupante e é nisso que a história de Vox tem êxito, por conseguir alertar, dosando a tensão na construção de todo o livro.

A narrativa é feita em primeira pessoa por Jean, que alterna o presente sufocante com os flashbacks de uma época (não tão distante assim) em que ela era livre e possuía direitos básicos, como ler e escrever. Os capítulos são curtos, o que eu adoro, pois, a leitura flui muito bem. Mas a cada episódio é impossível não perceber o quanto esta ferramenta usada pela autora traz à tona sentimentos de como o presente de Jean é angustiante e como ela está completamente a mercê de tudo isso.
É impossível não se sentir incomodado, não sentir o sofrimento de Jean como mulher e como mãe ao ver seus filhos se rendendo a um sistema retrógrado. Seja através dos atos da pequena Sonia, que prefere ficar o dia todo calada em troca de um doce, ou através do seu filho mais velho Steven, que vem sendo doutrinado sem que ela possa fazer nada. Também é interessante ter a perspectiva de Patrick, marido de Jean, que mesmo apresentando um certo apoio a esposa e uma certa repulsa ao novo sistema, se mostra apático, afinal, nada daquilo o atinge de forma direta.
Entretanto, infelizmente, da metade para o fim do livro o plot foi se desenvolvendo para uma direção que acabou me desapontando. Em determinado momento da história, Jean passa a estar liberta da sua prisão, então, toda aquela atmosfera claustrofóbica e tensa de falar o mínimo possível quando se quer muito gritar, passa e a história toma um novo rumo. A trama passa a decorrer num viés muito mais científico do que político propriamente dito e o que era interessante para mim no começo da história acaba ficando de lado.

Existe também um romance que eu achei desnecessário e que acaba roubando a importância do plot principal. O desfecho acaba decepcionando quando percebi que personagens secundários surgiram e sumiram sem grandes explicações ou quando alguns acontecimentos me pareceram extremamente convenientes. Mas talvez o grande problema tenha sido a resolução de toda esta realidade, tratada de uma forma muito elitizada pela autora. Se lá no começo o leitor tem certeza que a realidade de Vox pode existir dentro da nossa, o final é completamente fantasioso, o que me fez terminar a leitura com uma certa desesperança. O povo jamais poderia recorrer a esta solução.

De qualquer maneira, o livro continua tendo sua importância. Como disse, cai como uma luva se analisarmos o governo que se instalou desde o dia primeiro em nosso país. Vox é o tipo de livro que traz discussões além da distopia instalada. Um exemplo disso é o fato de Jean sempre relembrar de sua ex-colega de quarto. Jackie sempre a alertou sobre o comportamento do governo em relação as mulheres, sempre a chamou para passeatas e sempre a convidou para que ela usasse a sua voz. Durante a leitura percebemos o quanto o fato de Jean não ter a escutado a incomoda, agora que já é tarde demais.
Apesar das minhas ressalvas, Vox é uma importante leitura, pois fala muito bem sobre temas como política, machismo, religião, feminismo, questões relacionadas a comunidade LGBTQ+ e o quanto é perigoso quando o conservadorismo cresce sobre as raízes do fanatismo. É uma distopia que alerta e apresenta uma história que envolve, que é inteligente e que prova a importância da linguagem, da comunicação e da voz, principalmente quando ainda podemos usa-la. Portanto, se há algo que possa dizer sobre o que esta leitura me ensinou é: não resista em levantar sua voz, use todas as palavras que puder contar.

  • Vox #1
  • Autor: Christina Dalcher
  • Tradução: Alves Calado
  • Ano: 2018
  • Editora: Arqueiro
  • Páginas: 320
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