Como tantos apaixonados por filmes de super-heróis que não possuem medo ou vergonha de admitir o desconhecimento perante grande parte das jornadas que cada um destes personagens enfrentou nas histórias em quadrinhos que lhes deram origem, eu também aguardava ansiosa pelo lançamento de Capitã Marvel. Por tratar-se da primeira vez em que uma personagem feminina lidera a narrativa de uma adaptação da Marvel Studios, eu esperava nada mais e nada menos do que o melhor filme de super-heróis da história. Ingenuamente, desejei rever a boa e velha fórmula Marvel modificada, reprogramada afim de elevar o nível do jogo. Contudo, mesmo saindo feliz e encantada da sala de cinema, algo começou a me incomodar e, ao reavaliar tudo com olhos livres da emoção de conferir um filme tão aguardado, percebi a existência de pequenos deslizes, uma fórmula que está se tornando cada vez mais engessada e um desafio para a pessoa que redige este texto.

Minha primeira dificuldade encontra-se nas diferentes maneiras de abordar uma história cujos principais elementos e direcionamentos já nos eram conhecidos antes mesmo do filme ser lançado. Me pergunto como definir, no caso de Capitã Marvel onde compreendemos exatamente quem ela é, quais são seus poderes e como tudo se conecta à trama principal, evidenciada em Vingadores: Guerra Infinita, o que verdadeiramente seria um spoiler e o que seria informação interessante a ser compartilhada com espectadores que talvez não saibam o que esperar.

Será que meu leitor compreende a extensão dos poderes da Capitã Marvel? Será que ele reconhece o nome de Carol Danvers? Será que acompanha fielmente todos os filmes produzidos pela Marvel Studios e conhece as formas com que cada narrativa individual se liga à narrativa que compõem o famoso Universo Expandido? Em meio a tantas dúvidas optei por apresentar o básico desta história e seguir para as críticas e elogios pois, como ultimamente até mesmo a imagem de um gatinho pode ser considerada um spoiler (piada interna aqui), não pretendo estragar a experiência daqueles que talvez não saibam tanto quanto nós sabemos sobre os detalhes, teorias e inter-relações deste filme.

Portanto, o que você precisa saber é o seguinte: Vers (Brie Larson), também conhecida por Capitã Marvel, também conhecida na Terra por Carol Danvers, encontra-se no planeta Kree. Ela sabe ser humana, mas é incapaz de lembrar qualquer detalhe ou informação sobre seu passado. Os poderes que possui, de acordo com as autoridades responsáveis e o dispositivo implantado num ponto atrás de sua orelha, foram oferecidos pelos líderes do exército Kree. Quando a missão de sua equipe é surpreendida em um planeta inimigo, Vers é capturada e, após algumas cenas de luta, correria e superpoderes, rouba uma nave que a leva para o planeta Terra. Deparando-se com um ambiente desconhecido, visto somente nos resquícios de lembranças que possuí, a personagem irá descobrir seu passado, quem é o verdadeiro inimigo e quais são os limites e origem de seus poderes.

É possível observar Capitã Marvel por meio de três perspectivas específicas, talvez quatro, mas como esta assemelha-se o que muitos consideram spoiler, decidi diluí-la ao longo do texto para que saibam ao mesmo tempo em que não saibam do que estou falando.

A primeira perspectiva fundamenta-se na própria introdução e construção da personagem. Uma vez que Carol Danvers não foi mencionada por qualquer super-herói, em flashback ou cena extra – e ignoro de propósito o aparecimento do símbolo da personagem em outro filme – espera-se que sua personalidade, passado, trajetória, motivações, alianças e poderes sejam explorados e explicados ao longo do filme. A forma com que se introduz cada um destes elementos é muito interessante e bacana, sendo, talvez uma das poucas novidades inseridas à fórmula de filmes produzidos pela Marvel. A estratégia de apresentação do passado da personagem é fascinante, rápida e bem posicionada. Não se desperdiça um tempo precioso para demonstrar quem foi Carol Danvers e o que ela viveu. Não é necessário explicar em detalhes tudo o que ela viveu, mas sim mostrar ao espectador e nesse quesito o filme ganha muitos pontos. Com cenas bem estruturadas se resolve todo o passado da personagem, liberando espaço para que os pontos principais da trama possam ser explorados. Agora, com relação à personalidade de Carol Danvers vale a pena destacar um detalhe.

Embora muitos defendam que Brie Larson, a pedido dos produtores ou mesmo por direcionamento de roteiro imita descaradamente as características de Tony Stark ao longo do filme, acho pertinente destacar que este tipo de comparação apenas diminui o trabalho da atriz e, inspirando-se ou não no Homem de Ferro, o que encontramos aqui é uma personagem feminina forte, digna de seu nome e modelo para tantas garotas que amam ou estão aprendendo a amar esse universo de super-heróis.

A segunda perspectiva pela qual podemos observar Capitã Marvel está vinculada a própria criação de conexões com os eventos de Vingadores: Guerra Infinita e outros filmes que compõem a narrativa do Universo Expandido. Como o intuito deste texto não é revelar nada para aqueles que não conhecem as teorias e maneiras com que cada filme se interliga, basta dizer que o longa explica aspectos importantes, muitos dos quais já imaginávamos, alguns um tanto quanto surpreendentes e outros que, dependendo do espectador, podem ser um tanto quanto desnecessários (estou falando da forma como surgiu um certo nome).

Uma vez que estamos abordando as conexões de Capitã Marvel com outras narrativas e personagens, não poderia deixar de ressaltar o trabalho de Samuel L. Jackson como Nick Fury. Este se localiza muito além do mero alívio cômico. É dono das melhores expressões e piadas sim, mas também interage de maneira fenomenal com o gatinho Goose, além de estabelecer uma relação de parceria digna de nota com nossa personagem principal e, esse elemento está intimamente ligado com o último ponto que gostaria de observar neste texto.

Este ponto é o verdadeiro posicionamento feminista de Capitã Marvel e, felizmente e infelizmente, é neste aspecto que o longa brilha e comete seu maior deslize. O discurso é acertado, acessível, defendido ao longo dos mais diversos momentos e por meio dos mais diversos personagens e situações. O filme não encanta apenas quando Carol Danvers profere frases de efeito, quando se demonstra o apoio entre personagens femininas, quando se apresentam momentos onde meninas, garotas e mulheres foram julgadas e perseguidas por estarem seguindo caminhos predominantemente masculinos, ele brilha também nos momentos mais sutis, seja no ato de ignorar um pedido para sorrir, na amizade e companheirismo possível entre homens e mulheres ou mesmo na compreensão de que às vezes precisaremos de auxílio. O que este filme faz e faz muito bem é defender um discurso que muitas de nós já defendemos, contudo, sempre delineando suas palavras, imagens e ações com base no respeito e principalmente, na certeza de que não é generalizando ou transformando em vilões toda uma parte da população mundial que seremos capazes de transmitir nossa mensagem, mas sim expressando os motivos pelos quais ela é importante e auxiliando, portanto, na modificação de pensamentos engessados.

Apesar dos grandes acertos, Capitã Marvel erra profundamente ao não permitir que sua personagem principal sinta qualquer dificuldade no momento em que seus poderes atingem o nível máximo agindo inclusive, em cenas específicas, de uma forma que não convém com a gravidade e seriedade da situação. Uma vez que a mesma nunca recebeu oportunidades para usar seus poderes de maneira livre, para exercitá-lo e compreender seus limites, mas principalmente, uma vez que conhecemos todo o desenrolar de seu passado, é questionável a escolha de demonstrá-la totalmente capacitada no momento em que se liberta. É claro que existe uma mensagem aqui, é claro que após a frase de impacto proferida pela personagem (uma das mais bacanas do filme), a demonstração de seus poderes deve ser fascinante. Ainda assim, não devemos esquecer que esta mesma mulher nunca teve acesso liberado e, portanto, não saberia usá-lo tão facilmente, rapidamente e brilhantemente como usa. Saber os motivos pelos quais o filme lhe mostra toda a extensão dos poderes de Carol é uma coisa, outra muito diferente é ignorar que, como toda mulher, às vezes precisamos de um tempinho para compreender até onde se estendem nossos superpoderes.

No fim Capitã Marvel é um acerto de contas entre a Marvel Studios e todo o público feminino que acompanha fielmente cada novo filme lançado, seja este protagonizado por personagens masculinos, um grupo diversificado que luta contra o mal ou, finalmente, por uma forte e inspiradora super-heroína. Existem tantos outros aspectos interessantes, maravilhosos e adoráveis neste filme, mas acredito que o mais importante, aquele que devemos levar conosco após sair da sala de cinema é que mesmo com seus deslizes, ele apresenta um discurso que por muito tempo defendemos, e isso, o longa faz muitíssimo bem.

  • Captain Marvel
  • Lançamento: 2019
  • Com: Brie Larson, Samuel L. Jackson, Ben Mendelsohn
  • Gênero: Ação, Aventura, Ficção Científica
  • Direção: Anna Boden e Ryan Fleck

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