Em meio as florestas da Rússia medieval encontram-se paisagens encantadas não apenas por elementos ligados à sua beleza exuberante, natureza praticamente intocada ou distanciamento do crescente e caótico centro urbano de Moscou. Este território distante é encantado por algumas das formas mais puras de magia, por seres peculiares que protegem o ambiente natural, mantém o equilíbrio entre a vida e a morte, além de tomarem conta das residências dos habitantes que vivem e convivem nas terras pertencentes à Pyotr Vladimirovich.

Embora seu papel social, realização de atividades fortemente ligadas ao meio rural e distanciamento da capital culminem no afastamento de sua família do recebimento de títulos voltados a nobreza russa, a linhagem de Pyotr Vladimirovich sempre manteve boas relações com os monarcas e seus conselheiros. Um grande exemplo desta harmônica relação está no casamento de Pyotr e Marina. Marina é descendente direta de uma moça curiosamente peculiar, proveniente das florestas mais longínquas da Rússia. De linhagem desconhecida, ela chega ao castelo do czar em farrapos, com a magia pulsando forte em suas veias e o estabelecimento de uma intima ligação com os espíritos da floresta, pertencentes aos mais diversos mitos e histórias do folclore russo. Esta moça desconhecida conquista o coração do czar, porém, com seu casamento quebra-se a ligação com o encantado, o mágico, os mitos que ninguém possuía a capacidade de enxergar. Em meio a todas estas informações, compreendemos que Marina possuí uma pequena faísca do poder e conexão de sua antepassada e, quando se descobre grávida de uma menina, percebe que ela terá o dom místico de comunicar-se com aqueles seres protetores das florestas.

Mágica é esquecer que uma coisa já foi outra coisa além daquilo que você desejou que ela fosse.

Em meio a este contexto riquíssimo em detalhes, mitologia e algumas intrigas que optei por não destacar, seremos apresentados a Vasilisa, filha de Marina, quem possuí o dom de enxergar, comunicar-se e interagir com os mitos, os seres pertencentes ao folclore russo, aqueles que, a cada dia que passa, sofrem com o crescimento e predominância da religião católica.

Vasya é uma menininha curiosa, de personalidade forte, encantadora em suas características físicas, embora muitos, inspirados pelos padrões de beleza e cultura da época, a considerem feia. Ela possui uma conexão muito forte com a floresta, e, ao escapar uma vez mais para os limites da floresta que cerca os domínios das terras de seu pai, irá vivenciar um encontro que determinará grande parte de seu destino. Ao perder-se, Vasya encontra um velho carvalho retorcido. Ali, dormindo por entre as raízes da antiga árvore, encontra-se um ancião estranho, de aparência grotesca e com apenas um olho. Quando este homem desconhecido está prestes a tocar na pequena garota, outro homem misterioso, de cabelos negros e vestes branco azuladas, a toma em seus braços e, com a velocidade de sua égua branca, a leva para a segurança do lar. Com o passar dos anos o acontecimento se perde juntamente às mais variadas memórias da garota, contudo, a promessa de seu pai ao mesmo homem de cabelos negros e a forte ligação da menina com os seres da floresta, proporcionarão que, na mesma medida em que corre livre pelos campos e conversa com criaturas mitológicas, veja-se, pouco a pouco, amarrada pelos moldes, expectativas e regras da sociedade em que vive.

O Urso e o Rouxinol, primeiro volume de uma trilogia que vem sendo publicada pela Fábrica 231, trata-se de uma história criada com o intuito de explorar aspectos e contos do folclore russo na mesma medida em que interliga sua narrativa às características da cultura, contexto histórico e regras de um povo que, graças a habilidade e maturidade da autora, permitem a reflexão sobre assuntos importantíssimos para a sociedade atual. Para além do belíssimo trabalho de pesquisa, do contato com aspectos da cultura e folclore russo, esta obra nos demonstrará o crescimento e amadurecimento de uma menina diferente, curiosa, peculiar, bela à sua própria maneira e firmemente questionadora. É esta garotinha quem pouco a pouco percebe a importância não apenas da religião, mas também dos mitos; quem questiona a submissão e papel da mulher; quem luta pela segurança de sua família, mesmo que estes não compreendam suas ações; quem, mesmo que inconscientemente no início, lança-se de coração e alma em meio aos processos capazes de soltarem suas amarras e permitir que voe alto.

A obra é bela em todo o seu trabalho de pesquisa. É magnífica ao demonstrar que a autora compreende profundamente os elementos que insere na construção de sua narrativa e, muito mais do que tecer uma rede capaz de formar uma nova história, soube modificar características e detalhes afim de garantir a melhor experiência de leitura possível ao leitor. Do mesmo modo, a magia do folclore russo, a cultura deste povo tão distante de nós, seus nomes inusitados, suas palavras variadas, seus costumes não ofuscam a jornada de amadurecimento da personagem principal, além das críticas à hegemonia de um pensamento religioso que corrói, destruiu e dilacerou os mais belos e diversificados mitos da história humana.

O Urso e o Rouxinol destaca-se por uma narrativa repleta de personagens e, embora todos e cada um destes personagens seja aprofundado e explorado de maneira cuidadosa, sensível e racional, garantindo a intima conexão entre os diversos acontecimentos da narrativa, o foco desta história ainda reside na trajetória de Vasilisa. Através de uma escrita madura, repleta de detalhes, livre de qualquer elemento que poderíamos considerar apelativo, sem medo de apresentar contextos sombrios e, por vezes pesados, ao leitor, Katherine Arden nos introduz na vida, cotidiano, sonhos, frustrações e crescimento de Vasya. Ao longo de todas as páginas desta obra acompanharemos seu amadurecimento, sua transformação de criança em mulher, sua luta pela segurança da família e pela liberdade e concretização de seus sonhos. Através da figura de Vasya a autora demonstra como o meio em que vivemos pode cortar nossas asas, reduzir nossa visão e expectativas, mas, na mesma medida, nos impulsionar a mudar, nos fazer sonhar ainda mais alto e desejar o impossível.

Na mesma medida em que Katherine Arden aborda todos estes elementos, construindo assim uma narrativa rica em detalhes, intrigas, mistérios, mitologia russa, além dos mais belíssimos exemplos de crescimento e aprofundamento de personagens, observamos também uma crítica com relação as ações da igreja católica perante o folclore e todo tipo de pensamento, ação ou situação capaz de ameaçar sua hegemonia. Observamos humanos condenando humanos e pessoas comuns que verdadeiramente acreditam compreender com exatidão as necessidades, vontades e condutas esperada pelo deus a quem seguem. Nos é apresentada a clássica estratégia de transformar costumes inocentes e inofensivos em pecado, em algo a se temer por culminar na ira de deus e, consequentemente, no lançamento de castigos divinos para os pecadores mortais que ousaram lhe desobedecer. Acompanhamos, com a triste certeza de que o mesmo aconteceu em vários outros pontos temporais e localidades geográficas, uma manipulação do imaginário do indivíduo, fazendo com que o mesmo se condicione a seguir sempre as palavras do padre, a fazer o que a regras sociais esperam dele, a conformar-se com as maiores dores e a temer o castigo divino.

O Urso e o Rouxinol trata-se de uma narrativa fantástica repleta de mitologia e cultura, contudo, não deixa de relacionar-se com a realidade do leitor e dos personagens de sua própria história, apresentando críticas sociais, momentos de reflexão e detalhes que o transformam em algo muito maior do que um livro de fantasia, uma obra sobre a cultura russa ou uma jornada de amadurecimento de personagens. Por meio de uma escrita madura e cuidadosa Katherine Arden tece uma verdadeira teia de acontecimentos interligados, onde cada evento afetará o próximo e cada ação possuirá uma reação. Aqui não se teme o delineamento de situações sombrias e pesadas, porém, preza-se sempre pela qualidade da narrativa, pela relevância do que se é exposto e por possibilidades de demonstrar ao leitor a magia e realidade de uma obra ficcional.

Após tudo o que li, vi e senti ao longo deste primeiro livro, apenas posso esperar pela chegada de sua continuação, já publicada aqui no Brasil e intitulada A Menina na Torre. Tenho certeza de que o talento da autora nos presenteará com outra aventura fantástica, repleta de reflexões, críticas e mensagens que, após o término da leitura tudo o que desejaremos é a publicação do último volume desta trilogia.

  • The Bear and the Nightingale
  • Autor: Katherine Arden
  • Tradução: Elisa Nazarian
  • Ano: 2017
  • Editora: Fábrica 231
  • Páginas: 318
  • Amazon

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