Por volta de 1960, na medida em que pesquisadores, críticos e pessoas pertencentes as mais variadas classes sociais reconheciam e se assombravam com as consequências inesperadas de alguns dos piores erros humanos – erros estes fundamentados por séculos de história tortuosa – nasce um movimento e campo de pesquisa que hoje conhecemos por Ciência, Tecnologia e Sociedade. De forma resumida e um tanto quanto simplificada, os pesquisadores de CTS pretendem demonstrar e criticar a relação entre seres humanos, ou sociedades, e a ciência e tecnologia.

Por meio das mais diversificadas estratégias estes estudiosos demonstram como nossa crença cega nas possibilidades da ciência e tecnologia culminaram em crises, desafios e problemas enfrentados num passado próximo, hoje e também nos períodos que nos aguardam no futuro. Eles debatem o consumo desenfreado; a industrialização da vida e do meio natural; a exploração exacerbada da natureza; as maneiras com que elementos, princípios, instituições e contextos sócio culturais se interligam profundamente e como não podemos mais simplesmente observar as coisas de forma especializada. Além disso, os pesquisadores de Ciência, Tecnologia e Sociedade abordam uma das temáticas que permeiam as mídias sociais, os debates políticos e o livro que pretendo comentar hoje: as mudanças climáticas.

É realmente muito fácil assimilar o problema, se você quiser. Se você está preparado para fazer o sacrifício, renunciar a quaisquer privilégios e dar alguns passos para trás.

Sempre ressalto por aqui minha trajetória de pesquisa e dissertação de mestrado voltada aos gêneros de ficção científica e distopia. Contudo, acredito que em momento algum compartilhei com vocês o fato de que, para fundamentar e aprofundar tudo o estudei sobre estes que se transformaram em meus gêneros preferidos da vida, precisei compreender também minha outra paixão, o campo de pesquisa CTS. Meio ano antes de ingressar no programa de mestrado esta pequena padawan estudava com afinco – e sofria com alguns livros e textos, devo admitir – alguns dos principais estudiosos do movimento de Ciência, Tecnologia e Sociedade. Caso não tivesse formado esta base, possivelmente não entenderia tanto de ficção científica e distopia quanto entendo hoje. Mas, caso não tivesse formado esta base que considero tão preciosa, não poderia hoje sentar em frente ao computador e, com muito carinho, cuidado e um pouco de crítica sim, abordar o livro Nossa Casa Está em Chamas.

Greta Thunberg conquistou a atenção de políticos, ativistas, pais preocupados e toda a comunidade global com sua greve escolar em favor do debate e tomada de ações assertivas voltadas para a questão das mudanças climáticas. Durante aproximadamente três semanas a garota, que na época contava com apenas 15 voltas ao redor do sol, manteve-se firme em frente ao parlamento sueco. Todos os dias, invés de levantar e dirigir-se para uma escola que enfrentava desfalque de professores e encontrava dificuldades para lidar com as nuances e características dos alunos especiais que visava atender, Greta passava o período entre as 8:00 da manhã e 3:00 da tarde em greve pelo clima.

Seu movimento atraiu a atenção de repórteres, ativistas, familiares e outras crianças e, graças a ação imediata do compartilhamento de notícias e informações nas mídias sociais, contava já no segundo dia com apoiadores de todas as idades. Entretanto, ao contrário do que a imagem de capa pode dar a entender – o que se trata, importante destacar, de verdadeira sacada de marketing – Nossa Casa está em Chamas não se volta única e exclusivamente para a vida de Greta Thunberg ou sua greve escolar, mas sim para a união um tanto quanto inusitada e confusa de discursos e críticas perante a sociedade atual, da chamada de atenção para a questão das doenças mentais e psiquiátricas, do cotidiano da família Ernman/Thunberg e, por fim, de uma parcela da vida profissional de Malena Ernman, quem verdadeiramente escreve o livro.

Na medida em que acompanhamos detalhes da carreira, vida e cotidiano familiar de Malena Ernman, quem, ao que tudo indica, usufrui de certo reconhecimento no cenário da música clássica sueca e mundial, compreendemos também os desafios e sacrifícios que Malena e Svante efetivaram para garantir estabilidade, segurança e cuidado pleno a suas filhas. Enquanto o foco encontra-se voltado ao cotidiano, aos momentos em família e principalmente, a humanização e exposição da realidade de crianças e adultos diagnosticados com limitações psiquiátricas – aqui evito o uso do termo “doenças mentais” por acreditar que ainda enfrentamos um estigma muito grande com relação ao assunto – a escrita é cativante, fluida, verdadeiramente tocante. Embora seu objetivo não seja aprofundar e expor dados e informações sobre Síndrome de Asperger ou TDAH, o livro realiza um excelente trabalho ao demonstrar para o leitor as limitações, os desafios enfrentados por crianças que receberem tal diagnóstico.

Nossa visão é completamente transformada ao compreender como o cotidiano de uma família se transforma na medida em que se entende de onde nascem determinados comportamentos. Contudo, nos entristecemos ao perceber que, se um pais como a Suécia não é capaz de garantir educação de qualidade e humana para crianças com limitações, o que podemos esperar de outros países? Se na Suécia os professores, por inúmeros motivos, não permanecem mais de duas ou três semanas em seus empregos nas escolas para crianças especiais, quais devem ser os contextos vivenciados por crianças de outras nacionalidades e culturas?

Ainda que Nossa Casa Está em Chamas destaque-se por lanças luz a uma questão que enfrenta forte preconceito e desinformação em meio aos mais variados aspectos e convenções de nossa sociedade, conquistando o leitor com sua escrita acessível, cativante e humana, ele falha em seu principal objetivo.

Do início ao fim o livro busca formas de abordar a questão da “crise de sustentabilidade”, o debate acerca das mudanças climáticas, o fato de que os modelos industrial, consumista, antropocêntrico e capitalista nos direcionaram para os desafios atuais e consequências imprevisíveis do futuro, porém, em momento algum se preocupa em explicar para o leitor o que realmente é esta “crise de sustentabilidade”, quais conceitos importantíssimos estão sendo debatidos, como diversos elementos da sociedade, ações humanas, princípios morais, decisões de multinacionais e leis governamentais se interligam para fortalecer os caminhos errados que seguimos desde os séculos XVII e XVIII.

Embora uma pessoa que pouco conhece dos férteis e instigantes debates relacionados ao assunto possa sentir-se impulsionada a buscar informações e conhecimento a fim de construir sua própria visão e opinião, o livro não efetiva qualquer esforço para habilitar ou mesmo instrumentalizar o leitor a iniciar o processo de aprofundamento na temática. Um exemplo forte está na questão das viagens de avião. Do início ao fim defende-se que devemos reduzir ou efetivamente boicotar as viagens aéreas, mas as explicações, dados concretos e conversa nunca chegam. Jogam-se algumas informações aqui e ali, defende-se um posicionamento sem nunca se preocupar com o fato de que aquele que lê pode não entender onde está sua responsabilidade nisso tudo. E aqui a obra cai em outra problemática. Não se pode cobrar do indivíduo mudanças drásticas quando todos os elementos que compõem a sociedade permanecem iguais. Não se pode jogar a responsabilidade de mudança nas ações individuais quando, para conquistar efetivas mudanças, precisamos alterar todos os aspectos da sociedade, passando desde nossa maneira de pensar, até o método industrial e as leis governamentais.

Por compreender a complexidade do assunto, ter lido diversos livros que permeiam as discussões sobre mudanças climáticas e principalmente, compreender os conceitos e debates que existem por trás do discurso falho, fraco e pouco preocupado em permitir que o leitor aprenda, tenha acesso a informação de qualidade e verdadeiramente cresça na medida em que vira cada página, não posso defender o que encontrei em Nossa Casa Está em Chamas. Os dados são simplesmente jogados em meio a textos inflamados que servem apenas para aqueles que precisam de um pouco de inspiração para efetivamente adentrar neste mundo. Para uma pesquisadora que defende o poder da educação, que defende a transmissão de conhecimentos de maneiras que auxiliem as pessoas a crescerem e transformarem suas visões de mundo, é triste ver como a obra foi escrita. Contudo, como elemento para chamar a atenção do público e talvez garantir que o leitor tenha fôlego para buscar informações por si mesmo, a obra cumpre seu papel.

Greta Thunberg conquistou a atenção do mundo com sua greve escolar em favor das mudanças climáticas e ninguém pode ousar negar que sua atitude foi mais efetiva do que a de inúmeros pesquisadores, educadores e ativistas que vieram antes dela. Enquanto buscávamos formas de ser ouvidos essa garota, silenciosamente, conseguiu o que mais sonhávamos: atenção para um problema sem volta! Porém, seus discursos se assemelham aos textos deste livro, são eficazes para chamar a atenção e cativar o público geral, porém carecem de conceitos, informações aprofundadas, dados transformados em conhecimento e uma estratégia capaz de permitir que os ouvintes compreendam exatamente o que precisam fazer para ajudar. Ao contrário do que pregam muitos, esta não é uma questão simples de ser compreendida e menos ainda de ser solucionada.

É certo que não posso cobrar de uma garota de 16 anos posicionamentos, discursos, informações e conhecimentos que eu mesma levei anos e anos para adquirir, mas gosto de colocar a questão em perspectiva para que vocês enquanto leitores compreendam minhas críticas perante o livro. Nossa Casa Está em Chamas é um bom livro, mas, caso os leitores queriam conversar um pouquinho mais sobre as questões levantadas ou mesmo queriam tirar dúvidas sobre tópicos específicos, saibam que estou aqui para o que der e vier!

  • Scener ur hjärtat
  • Autor: Svante e Greta Thunberg, Malena e Beata Ernman
  • Tradução: Sonia Lindblom
  • Ano: 2019
  • Editora: BestSeller
  • Páginas: 336
  • Amazon

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