Apesar de ler pouquíssimos romances policiais, narrativas de mistério e assassinato, além de thrillers que nos tiram o sono, acredito entender o suficiente de literatura para arriscar escrever alguns comentários e análises sobre obras do gênero. Meu radar para os últimos e mais instigantes lançamentos pode não se encontrar alinhado com as expectativas de leitores que amam e conhecem tudo o que há para se conhecer sobre estas histórias, mas, quando surgiu a oportunidade de realizar a leitura de Cari Mora, novo livro de Thomas Harris – autor de O Silêncio dos Inocentes, Dragão Vermelho e Hannibal – fiquei tão curiosa quanto qualquer apaixonado por narrativas de mistério e assassinato.

Meu primeiro contato com o autor, contudo, resultou em decepção, confusão e a certeza de que Cari Mora trata-se de mais uma daquelas histórias cujo potencial não foi devidamente explorado ou aproveitado por seu conceituado criador.

De escrita acessível, baixo nível de detalhamento e ritmo fluído, Cari Mora delineia como objetivo principal a interligação da jornada de vida da protagonista aos planos obscuros de um grupo criminoso que, dentre outros empreendimentos, pretende encontrar e tomar posse da fortuna escondida de Pablo Escobar. Tendo definido o objetivo e direcionamento essencial da narrativa, descobriremos que Cari Mora é uma imigrante que vive nos Estados Unidos graças às políticas de abrigo e ao auxílio de uma pessoa específica de seu passado sombrio, dolorido e traumático. A moça, cujas descrições destacam a beleza e encanto, vive com a tia, a irmã e sua pequena sobrinha em um apartamento pequeno. Trabalhando como auxiliar em uma clínica veterinária que auxilia na recuperação e retorno seguro de animais silvestres aos seus habitats naturais, bem como caseira da famosa mansão de Pablo Escobar, ela enfrenta todos os desafios a fim de realizar seus sonhos e conquistar muito mais do que a sobrevivência.

Porém, quando a infeliz mansão Escobar é alugada por um grupo de homens misteriosos cujas ações, olhares e propósitos perante a residência indicam tratar-se de criminosos em busca da escondida fortuna do famoso traficante colombiano, nossa corajosa e habilidosa protagonista se vê entre o fogo cruzado. Enquanto o grupo de Hans-Peter quebra paredes e recebe dicas de como chegar ao tesouro escondido, outro grupo criminoso se pronuncia para tomar posse da fortuna. É a partir deste ponto que Cari Mora enfrenta os mais variados perigos e desafios, aliando-se à homens cujas ações questionáveis podem salvar sua vida e seu futuro, além de distanciá-la das mãos sujas de Hans-Peter, quem, descobriremos, está imerso no tráfico e tortura de mulheres.

Dentre os três principais pontos que me decepcionaram ou desagradaram ao longo desta leitura, considero importante, antes de expor meus comentários e críticas, destacar os elementos de valor, os pontos fortes, o que verdadeiramente me agradou neste livro. Como mencionei, a escrita de Thomas Harris é muito acessível, contando com baixo nível de detalhamento de personagens, cenários e eventos. Estas características possibilitam que o ritmo de leitura seja fluído, permitindo, ainda, que o leitor avance rapidamente por todas as 237 páginas em poucas horas. Entretanto, atrelado a estes elementos encontra-se o fato de que, do início ao fim da narrativa, o autor demarca uma quantidade considerável de ação, situações de tensão ou acontecimentos inesperados, construindo um ritmo fluído e eletrizante de leitura, o que acaba por compensar todos os pontos fracos da obra.

E já que estamos falando em pontos fracos, talvez o aspecto que mais me decepcionou ao longo de toda a leitura foi o emprego da clássica estratégia de delimitar como personagem principal uma mulher capaz de enfrentar todos os desafios impostos pelos homens cruéis, vingativos, inescrupulosos e violentos que a vida depositou ao longo de sua trajetória de vida. Abordarei a questão da construção da protagonista no próximo parágrafo, porém, aqui gostaria de expressar meu cansaço e tristeza perante essa mania de classificar todo personagem masculino como cruel, maldoso ou violento.

É claro que existem casos e casos, e é claro que quando existem justificativas plausíveis de narrativa, além de embasamento e aprofundamento suficientes, não tenho problemas com o emprego da estratégia. Mas quando enquadramos todos os homens como degenerados – até mesmo aqueles que podem vir a se aliar à protagonista – estamos perpetuando a crença de que todos os espécimes masculinos não prestam, não podem aprender, não podem mudar e, ou irão servir como vilão a ser odiado ou irão servir como peça para elevar a personagem principal. Acredito que existam tantos homens cruéis, violentos e desonestos quanto homens com capacidade de crescimento e evolução, e ficaria muitíssimo feliz se encontrasse mais livros que fugissem da estratégia de posicionar homens contra mulheres e mulheres contra homens.

E é neste ponto que me irrito também com a construção de Cari Mora. Uma vez que todos os homens são maldosos, violentos e cruéis e só querem diminuir, se aproveitar, assassinar, maltratar, desmembrar ou se livrar da personagem, só encontramos um caminho a seguir. Tenho certeza de que você já cursou esse caminho antes, ele sempre apresenta uma mulher poderosa, corajosa e habilidosa que enfrenta tudo, todos os crimes e criminosos, nos brindando com uma figura inspiradora que derrota homens malvados. Não nego que Cari Mora realmente seja inspiradora, que seu passado seja sombrio e doloroso, porém, percebi que Thomas Harris utilizou cada detalhe de seu passado e de sua personalidade como mera justificativa para as coisas que ela sabe fazer, as armas que ela sabe manusear, os olhares que ela rapidamente interpreta a fim de se distanciar do perigo. Tudo em Cari existe para que a história possa seguir seu rumo confuso e mal arrematado. Do ponto de vista narrativo, seu passado somente é apresentado para criar conexão com o leitor e explicar como ela aprendeu tudo o que aprendeu. Ela já chega pronta para enfrentar tudo que o autor reservou para ela e, por esse motivo, não nos surpreende o que vem a seguir, muito menos o fato de ser mais eficiente do que os poucos homens decentes que encontra em seu caminho.

Por fim, resta expressar todo o meu descontentamento para com os elementos, cenas e personagens pessimamente empregados ao longo da história. Algumas informações estão presentes neste livro simplesmente pelo fato de estarem ali. Alguns elementos, como um crocodilo comedor de gente, servem apenas para o propósito de criar uma cena angustiante, de ação, que logo não terá relevância para o enredo, sendo verdadeiramente subutilizada. Alguns personagens surgem apenas para tentar criar um mínimo de contexto aos personagens, desaparecendo logo em seguida. Enquanto outros, considerados alguns dos principais para a trama, mal possuem contextualização e aprofundamento, sendo nada mais do que maldosos e cruéis.

Dito isto, Cari Mora trata-se de uma história cujo potencial não foi completamente explorado. Trata-se de um livro pessimamente estruturado, escrito por um autor renomado. Trata-se de um exemplo perfeito de livro com pontos fortes e fracos, porém que, infelizmente, evidencia as falhas da narrativa e pode decepcionar o leitor mais exigente. Não se trata, contudo, de um desperdício de tempo, de uma experiência ruim, de uma história completamente decepcionante. O livro, como tantos outros antes dele e tantos que ainda estão por vir, pode agradar outros leitores, pode ser uma experiência bacana para passar o tempo ou instigar outras pessoas a conhecerem as obras de Thomas Harris. E, apesar de tudo o que comentei e critiquei, finalizo este texto afirmando que pretendo oferecer outra chance ao autor, afinal, se fui capaz de me encontrar com Stephen King, também serei capaz de me encontrar com o famoso Thomas Harris!

  • Cari Mora
  • Autor: Thomas Harris
  • Tradução: Clóvis Marques
  • Ano: 2019
  • Editora: Record
  • Páginas: 237
  • Amazon

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