Escrito pela romancista e jornalista Katherine Dunn, publicado pela primeira vez no ano de 1989 e reconhecido como um dos livros preferidos de Neil Gaiman e Kurt Cobain, Geek Love rapidamente se transformou em fenômeno literário cult e inspiração para a criação de filmes, jogos e seriados como American Horror Story. Com seu estilo de escrita intrigante, perfeitamente estruturada, belamente trabalhada e fortemente voltada para o estranho e o bizarro, Geek Love também se transformou em uma das obras que mais me desafiam no momento de apresentar para novos leitores, expressar minhas reflexões, além de separar história de experiência de leitura, narrativa de leitor!

É por esse motivo que tanto lutei contra as palavras ao longo deste texto. É por esse motivo que me percebi incapaz de separar o que penso do livro dos elementos que o compõem. É por esse motivo que inseri comentários e “críticas” – vale a pena lembrar que a palavra crítica não significa, necessariamente, algo negativo – ao longo de toda a resenha, pouco me importando com possíveis divisões pré-estabelecidas por outros criadores de conteúdo literário, pois Geek Love requer o maior cuidado e responsabilidade de minha parte justamente pela complexidade dos temas que levanta, seguindo por um caminho muito mais sombrio do que a alegre e inconsistente “celebração das diferenças”.

A trajetória do Fabuloso Circo Binewski, empreendimento familiar encabeçado por Al e Lil, inicia-se quando o casal opta por ingerir as mais variadas e perigosas substâncias químicas a fim de gerar crianças cujas deformações ou peculiaridades garantissem o surgimento de atrações dignas de encantar multidões. Embora tenham nascido com peculiaridades, necessidades específicas e limitações características de suas próprias condições físicas, as crianças foram, aparentemente, amadas por sua mãe e pai, sendo instigadas a integrarem a vida neste verdadeiro Freakshow ambulante desde os primeiros dias de suas vidas.

Vale ressaltar, contudo, que o ato de ingerir anfetaminas, arsênico e substâncias radioativas possibilita também que uma porção considerável de crianças venha ao mundo e morra logo em seguida. Isso pelo fato de que suas deformações ou peculiaridades impossibilitavam o crescimento saudável ou mesmo sobrevivência. Consequentemente, deixa-se para trás uma mãe que, pouco a pouco – e isso fica claro na medida em que o enredo se direciona para o desfecho -, encontra-se cercada por traumas e dores de uma vida confusa e problemática.

Ainda que os eventos e elementos destacados instiguem calorosos debates e reflexões acerca das motivações da autora quando da inserção destes detalhes em meio a narrativa, ou mesmo se ela possuía alguma motivação para além do choque e confronto com o leitor, os direcionamentos principais desta história se voltam para as consequências do nascimento de toda e cada criança Binewski, bem como de suas personalidades, desafios e as maneiras com que trouxeram fortuna e ruína para o nome da família. É neste contexto que conheceremos uma das personagens principais deste livro, aquela que narra os acontecimentos do passado e escolhas do presente, aquela que presenciou ou vivenciou grande parte do que nos é apresentado e, por esses mesmos motivos, além do fato de descortinar uma personalidade sugestionável e tendenciosa – novamente, algo que apenas próximo ao desfecho os leitores serão capazes de compreender – não pode ser considerada confiável. É por isso que, enquanto leitora e resenhista, preciso de ainda mais atenção e cuidado ao elencar as características desta obra, uma vez que nossa querida Olly, a anã albina e careca que nos direciona por cada capítulo, possuí o poder de decidir quais elementos irá compartilhar, quais irá alterar ou ignorar.


Por entre recordações, pensamentos e opiniões estrategicamente determinadas pelos contextos de sua vida, Olly pouco a pouco posiciona as peças do quebra-cabeças que era o Fabuloso Circo Binewski, demonstrando ao leitor os questionáveis capítulos de sua história, as vidas que encantou e extinguiu, a tragédia de seu fechamento, além do bizarro culto elaborado por Arturo, o Aquaboy. Manipulador, egocêntrico, cruel e encantador de multidões, o irmão de Olly tinha a família, o espetáculo e a atenção do público na palma das mãos. Na medida em que deixa a infância para trás ele assume controle das vidas e destinos de cada funcionário, parente ou visitante, tomando para si as atividades que eram exercidas pelo pai – quem considero omisso e irresponsável ao longo de grande parte da narrativa –, tornando-se capaz de construir o terreno ideal para a consolidação de seu culto às deformações e “diferenças”. Rapidamente Arturo se transforma no comandante, no promotor da atração principal, naquele que decide quem morre e quem vive, naquele que escolhe para quem destinar seu carinho e atenção ou sua crueldade. Enquanto seus pais seguem omissos, Olly aceita, releva e ignora os mais sombrios atos do irmão. Enquanto multidões fazem fila para ouvir o espetacular Aquaboy, o caçula da família é manipulado e levado a acompanhar e cometer as mais incríveis e terríveis atrocidades. Enquanto Arturo convence centenas a se mutilarem, as irmãs siamesas Elly e Iphy são pouco a pouco separadas.

A lista de atrocidades, bizarrices, assassinatos, manipulações e crueldades é infinita em Geek Love e, embora a obra cative o coração de muitos leitores, os quais expressam o quanto Olly é “fofa” apesar de abster-se da responsabilidade pelos crimes aos quais foi conivente; o quanto Arturo é cativante apesar das atrocidades e crueldades cometidas; o quanto Chick, o caçula da família, é adorável apesar de ser controlado e manipulado do início ao fim… continuo defendendo que esta narrativa não se trata de uma emocionante celebração das diferenças, mas sim da tentativa de confrontar os piores eventos e atrocidades humanas com a posição moral do leitor.

Ainda que a escrita de Katherine Dunn seja instigante, habilidosa, primorosamente estruturada e verdadeiramente fluida, a atmosfera de sua história é pesada, sombria, confusa e extremamente delicada. Ao longo de todo o livro a autora, como verdadeira malabarista atravessando uma corda bamba, se equilibra no limite entre o correto e o errado, entre o amor e o ódio, entre a humanidade e a monstruosidade, entre o choque e o confronto de ideias, entre a compreensão do leitor e sua confusão, entre o normal e o anormal. Por consciente ou inconscientemente brincar com estes limites, tornou-se um desafio para eu elencar ou mesmo entender seus objetivos perante a história. Não sou capaz de expressar se ela pretendia somente chocar o leitor, se buscava posicioná-lo frente a frente com atos condenáveis a fim de observar como reagia, se gostaria de celebrar as diferenças às custas de tudo e todos, ou se depositou alguma mensagem ao longo de suas palavras. E, caso tenha transmitido alguma mensagem profunda, sigo me perguntando onde estará!

Algumas de minhas obras preferidas contém lições, reflexões ou fortes críticas para com os mais variados aspectos da vida humana. Sou extremamente apaixonada por livros que, muito mais do que transmitir mensagens, oferecem espaço suficiente para que o leitor interprete e elabore suas próprias visões, suas próprias lições, suas próprias críticas. Contudo, em Geek Love sinto existir apenas este espaço infinito para a interpretação e debate dos leitores e, por mais que busque, não consigo encontrar o que exatamente Katherine Dunn queria com sua mais importante e famosa história!

Geek Love e seu Fabuloso Circo Binewski são amados pelos mais diversos tipos de leitores, transformaram-se em favoritos de artistas e celebridades, conquistaram valor literário e marcaram uma geração. Não pretendo negar sua importância, ignorar as experiências de leitura de pessoas defendem e exaltam a obra, muito menos diminuir a habilidade e criatividade de Katherine Dunn. Mas me decepciona chegar ao fim de um livro como esse e não ser capaz de perceber posicionamentos claros por parte da autora, mensagens definidas e um desfecho que, no mínimo, ofereça indicações de uma lição ou mensagem. Para aqueles curiosos ou prestes a iniciar a leitura, recomendo cautela, criticidade e atenção… e se todo o resto falhar, que aproveitem este peculiar e maravilhoso espetáculo!

  • Geek Love
  • Autor: Katherine Dunn
  • Tradução: Débora Isidoro
  • Ano: 2018
  • Editora: Darkside Books
  • Páginas: 416
  • Amazon

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