Tem histórias que, quando a gente fica sabendo sobre elas, fica difícil acreditar, pois parece coisa de filme, de outro mundo de tão louca. Mas a gente sabe que coisas sem sentido acontecem e que pessoas inocentes muitas vezes são condenadas injustamente.

Na Ilha de Vardø, na Noruega, em 1617, uma tempestade foi a causa da morte de 40 homens que estavam no mar pescando. Neste lugar pequeno, os homens viviam da pesca enquanto as mulheres ficavam em casa. Assim, quando a tempestade matou praticamente todos os homens, as mulheres acabaram ficando sozinhas e sobrecarregadas com as obrigações dos homens. Logo após, essas mesmas mulheres, que estavam sofrendo e tentando sobreviver, foram acusadas de bruxaria e de terem provocado a catástrofe. O motivo principal: o povo indígena sámi que pertencia a região. Ao todo, 91 pessoas, sendo 77 mulheres e 14 homens, foram condenadas à morte na fogueira, entre 1621 e 1663. Kiran parte desse desastre e dessa caça às bruxas para contar sua história.

Maren e outras mulheres da Ilha de Vardo vão ver seus irmãos, pais, namorados e maridos serem levados pela forte tempestade. O desespero e tristeza tomam conta dessas mulheres que perderam seus companheiros de vida. Só sobraram meninos pequenos e três idosos que não tem condições de trabalhar. O tempo não perdoa e elas precisam sobreviver, assim são obrigadas a aprender tudo que os homens faziam para o sustento das pessoas na ilha.

Três anos depois do ocorrido, as mulheres estão adaptadas e até mesmo pescando em alto mar. Todo esse comportamento e essa independência não é vista com bons olhos pelos soberanos religiosos. Para ajudar na perseguição, o povo indígena sámi tem a tecelagem dos ventos e a conversa com espíritos como práticas, além disso eles não frequentam a Kirke (igreja da ilha). É nesse contexto que chega Absalom Cornet, religioso disposto a colocar tudo na ilha no lugar, e sua esposa, Ursa. A caça às bruxas chegou em Vardo!

Eu sabia que ia adorar esse livro e foi exatamente isso que aconteceu. Depois que eu li O Martelo das Feiticeiras e o Grimório das Bruxas, eu fiquei curiosa para saber mais histórias envolvendo esse momento tão cruel, como foi a caça às bruxas. O melhor de Vardo é o modo bonito e cheio de sutilezas que a autora resolveu contar essa história.

“Maren não diz a si mesma que ama Ursa, mas sabe que é o mais próximo do amor que jamais sentiu. Com essa emoção dentro de si, ela sente tão corajosa quanto Kristen de calças, e embora sinta prazer com o sentimento, sabe que ele também é imprudente e perigoso”.

É claro que o debate religioso aqui é muito forte, principalmente depois da chegada de Absalom, que já começa furioso ao saber que há mulheres que não frequentam a “igreja”. Através de sua presença, o clima na ilha é de preocupação e cuidado por parte das mulheres, tudo vira ponto de atenção, pois elas não querem ser perseguidas, já que no outro lado na ilha elas ficaram sabendo que pessoas estão sendo executadas, pelo simples fato de serem outro povo com outras crenças. A presença de mulheres lapã entre elas também não passa despercebido. E o curioso é que várias mulheres tinham até mesmo procurado a Diinna, no passado, para tecelagem do vento e outras coisas, e agora se viram contra ela.

Confira a resenha de O Martelo das Feiticeiras

A narrativa está centrada em Maren e Ursa. Maren tem seus altos e baixos durante a narrativa, ela perdeu, no mesmo dia, o noivo, o irmão e o pai. Então mesmo que ela comece de forma sutil e sofrida, ela é uma mulher muito forte e sábia. Ela sabe avaliar bem as situações que aparecem e entende quando é hora de falar e de ficar quieta, além de compreender até onde deve falar. Sua situação é delicada, pois está entre a cunhada, que vem de uma tribo indígena e acredita em rituais diferentes dos cristãos, e sua mãe, que abalada pela morte do marido e do filho, se volta mais para as crenças em seu Deus, além de se colocar contra a nora. É uma situação complicada para Maren, pois ela respeita as crenças das duas.

Ursa, que foi obrigada a casar com Absalom, veio de uma boa família, financeiramente falando, e era de outro lugar da Noruega. Então ir para tão longe mexe com ela, que estava esperançosa de ter um bom casamento. Contudo, Absalom não é o carinhoso e dedicado marido que ela esperava. Ursa é muito delicada e sonhadora, mesmo nos momentos ruins, ela tem esperança de que coisas boas irão acontecer. Sua relação com o esposo é estranha e de pouca conversa. Vardo é muito diferente do que ela imaginava e queria, sua casa é simples, o lugar e frio e as mulheres parecem não gostar dela. Contudo aos poucos sua amizade com Maren vai tomando forma.

A autora trabalha de forma muito sutil a relação amorosa das duas. Vamos ver elas se aproximando e se apoiando uma na outra. Elas, tão sofridas, descobrem que juntas podem descobrir o que é o amor verdadeiro. Contudo, não podemos esquecer que, nesse cenário de caça às bruxas, todo cuidado é pouco.

Eu gostei muito das duas personagens, mas acho que foi muito importante como a autora trabalhou as outras personagens também. Vamos ter a mulher que não vê problemas em usar calças, a mulher que é uma beata que acha que todo mundo pode estar confabulando com o demônio, a mulher que por acreditar em algo diferente é a primeira a considerada bruxa, e a mulher que por dor e sofrimento se vira contra as suas. É através de cada uma que Kiran Millwood Hargrave vai trabalhando assuntos diferentes e trilhando o caminho das mulheres de Vardo.

A escrita é muito gostosa e envolvente, e há vários momentos que me tiraram diversos sentimentos, eu fui da raiva ao alívio. Fiquei com muito medo do destino das personagens, contudo acho que foi um final justo para a narrativa. Vardo: A Ilha das Mulheres é um livro sobre mulheres independentes e livres, que por causa disso são perseguidas, e sobre amor e poder. Que livro bom, meu povo!

  • The Mercies
  • Autor: Kiran Millwood Hargrave
  • Tradução: Flavia de Lavor
  • Ano: 2021
  • Editora: Record
  • Páginas: 350
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