Antes mesmo de tornar-se Sri Lanka, a antiguidade do belo país insular expressava complexos conflitos devido a movimentação, instalação e convivência do povo cingalês, adepto ao budismo, e povo tâmil, adepto ao hinduísmo. Não bastassem as diferenças culturais e religiosas dos grupos étnicos, em 1505 o território transforma-se em colônia de Portugal, sofrendo tentativas de “conversão” da população ao cristianismo, o que contribuí para o crescimento do descontentamento populacional e surgimento de embates fundamentados em crenças religiosas.

Como diriam as sábias vozes espalhadas pelos confins da internet, “daqui para frente só para trás” e, com a invasão inglesa, em 1802, o pequeno país vê-se perdido em manipulações e movimentações político religiosas que, não apenas nutrem sua carência de estabilidade, infraestrutura e senso de comunidade, como elevam suas diferenças e aumentam as distâncias existentes entre os principais grupos étnico religiosos do país.
“Seres humanos acreditam que criam seus próprios pensamentos e possuem vontade própria. É mais um placebo que engolimos depois de nascermos. Pensamentos são sussurros que vêm de fora tanto quanto de dentro. Não podemos controla-los mais do que controlamos o vento. Os sussurros sopram pela sua mente em todos os momentos e você vai sucumbir a mais deles do que imagina.”
Embora conquiste sua independência em 1948, as cicatrizes de anos de colonização e embates internos provocaram o surgimento de grupos dissidentes, muitas vezes manipulados por interesses de nomes poderosos pertencentes à classe alta do país, ou grupos internos e externos que somente ganhariam com a falta de organização de uma população cansada pelos abusos subsequentes e exausta por lutar para sobreviver em um país que parecia pouco se importar com aqueles que, real e verdadeiramente, o formava. À medida que cada grupo encontrava meios de conquistar seus próprios desejos, ignorando a as injustiças e desigualdades sociais que se espalhavam, fundamenta-se o contexto necessário para a eclosão de uma Guerra Civil e, de 1983 a 2009, o país sucumbe a uma série de atentados, conflitos armados, desaparecimentos e atrocidades cometidas por grupos como o LTTE (Tigres de Liberação do Tamil) ou o STF (Força Tarefa Especial).
É a partir de todas as nuances e contexto histórico social do país que Shehan Karunatilaka constrói sua vibrante, bem-humorada e crítica narrativa, tecendo uma trama que permeia elementos sobrenaturais da cultura do Sri Lanka, passando pelas consequências dos conflitos na vida da população até chegar aos percursos particulares dos principais personagens dessa história!
O Saguão de Recepção do Interstício é tão confuso e caótico quanto o mais estressante e desalentador sistema bancário. Os assistentes não são capazes de fornecer informações precisas e pouco podem oferecer para as vítimas do mundo, aquelas pobres almas que morreram e agora acordam com a resposta para a pergunta que todo mundo faz: a resposta é sim, e, é igual aqui só que pior. Malinda Albert Kabalana, Maali Almeida para os íntimos, é nosso carismático protagonista. Como todas as almas do recinto, ele morreu do que poderíamos deduzir tratar-se de acerto de contas, limpeza de pessoal, perseguição política, causas naturais ou desgosto, todas as opções seriam possíveis. O problema com nosso querido Maali é não se lembrar de como morreu, quem o matou e quais os motivos, ações e escolhas que contribuíram para a ocasião de sua morte.

Com uma câmera fotográfica quebrada pendurada no pescoço e um cartão de visitas, ele recorda ter sido importante fotógrafo de guerra / denúncia / daquilo que e para aquele que pagasse o suficiente para que se infiltrasse em acampamentos, encontros secretos, zonas de guerra e localidades de atentados a fim de conseguir a foto perfeita dos rostos, nomes, seres e detalhes do país em que vive.
Aconselhado pelos assistentes do Interstício a finalizar suas pendências terrenas até o fim de sua sétima lua como espírito, orientado por demônios a vingar-se de todos os envolvidos com sua morte, e direcionado, por fantasmas partidários de causas político sociais, a participar de uma ação sobrenatural contra os principais nomes governamentais que fazem desaparecer, torturar e perseguir membros da população, Maali Almeida percorrerá os mais variados pontos da cidade de Colombo e recantos de sua memória a fim de descobrir os contextos envolvendo sua morte, como direcionar aqueles que mais amava aos negativos de suas fotografias mais preciosas e, principalmente, como garantir que sua família permaneça segura em meio a guerra.
As Sete Luas de Maali Almeida, vencedor do Booker Prize 2022, é uma espécie curiosa de literatura de denúncia mesclada ao que os estudiosos e apreciadores do gênero poderiam classificar como realismo mágico – particularmente, não compreendo os pormenores da fantasia, por isso não tenho certeza alguma sobre o que anuncio em forma de afirmação. Com escrita fluida, bom humor, sagacidade, crítica social, tapas na cara e uma boa dose de construção de imagens que direcionam o olhar para a vida da população do Sri Lanka, Shehan Karunatilaka nos transporta para um país, uma cultura e uma história que, por infinitos motivos, talvez desconhecêssemos.
É curioso pensar que, na Era da Comunicação, com seus algoritmos tendenciosos e desconexão digital, uma porção de comunidades e grupos que precisariam de atenção, divulgação e impulsionamento permanecem isolados em suas bolhas virtuais, enfrentando seus problemas sozinhos, ou recebendo ajuda apenas de vizinhos reais, enquanto a atenção do mundo permanece voltada as potências imperialistas que, de uma forma ou de outra, contribuem para a manutenção do estado de coisas em que encontramo-nos todos. Por ação acidental do destino ou obra graciosa da sorte, às vezes uma obra cinematográfica, um jogo digital ou uma narrativa literária ultrapassam as barreiras geográficas e estouram a bolha de culturas, religiões e sociedades, alcançando leitores capazes de reconhecer sua importância, valorizar suas diferenças e refletir sobre suas mensagens.
Esse livro pertence ao grupo mencionado – particularmente, talvez um dos melhores grupos que podemos encontrar na produção literária contemporânea. Com habilidade, o livro transforma a sina de personagens ficcionais em seres de carne e osso, aproxima o leitor de situações e contextos que, convenhamos, poderiam acontecer no nosso próprio quintal, constrói simpatia e empatia por comunidades que, apesar da posição geográfica e diferenças culturais, é tão nós quanto nós mesmos.
Isso é possível devido a maneira como Shehan Karunatilaka trabalha o narrador da história. Ele nos apresenta detalhes históricos sem preocupar-se em preencher as lacunas – como bons leitores, podemos muito bem buscar informações nos confins da internet -, contextualiza cenários sem carregar o texto de informações históricas, constrói personagens tão humanos e tão característicos de um país, que poderiam ser nossos vizinhos ou amigos. Acima de tudo, sendo uma entidade a parte, o narrador de As Sete Luas de Maali Almeida é capaz de tecer críticas sociais, teorizar eventos históricos, transpor-se para pontos específicos do espaço quando bem deseja, introduzir características de personagem e, ainda, apontar com um sarcasmo engraçadíssimo, as rachaduras no mundo em que vivemos. Contudo, no fim você não precisa aceitar, concordar ou acreditar em tudo que o narrador expôs, a interpretação e reflexão ainda são livres e particulares a mente de cada um. Mas ah! De risadas sinceras a lágrimas dolorosas. Do possível conflito de filosofias e descontentamento. Do desgosto pelas críticas apontadas a possível mudança de perspectiva, tudo nos pede para que o livro continue a ser, no mínimo, impulsionado para o centro da atenção de novos leitores!

- The seven moons of Maali Almeida
- Autor: Shehan Karunatilaka
- Tradução: Adriano Scandolara
- Ano: 2023
- Editora: Record
- Páginas: 406
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