A Vanessa de 32 anos não sabe mais no que acreditar. Uma vida inteira de amor, confiança e segredos estão ruindo sob seus pés. A mente prega peças, e as vozes externas parecem altas demais para que ela possa simplesmente ignorar. Abusador, pedófilo, estuprador. As denúncias não param, as mulheres não se calam. Que monstro é esse que todos dizem conhecer? Esse não é o Strane que Vanessa amou. Strane era um professor humilde e de bom coração que teve a infelicidade de conhecê-la. A Vanessa de 15 anos foi a ruína desse homem. Sua carreira, seus sonhos, sua vida. Ela, assim como Lolita, nasceu com o dom de destruir esses pobres coitados. Ele simplesmente não conseguiu resistir. Ela era poderosa demais para que ele conseguisse se controlar. A paixão foi inevitável. E se era amor, por qual motivo era considerado tão errado? Essas mulheres estão exagerando. Estão distorcendo a realidade. Ela era única para Jacob Strane e o que eles viveram não pode ser maculado por essas mentirosas que se dizem vítimas em sua busca por atenção.

Vanessa Wye tem 15 anos quando é transferida para uma nova escola. A relação conturbada com a mãe fica ainda pior quando ela briga com a única amiga que possui. A progenitora insiste que Vanessa deve conhecer novas pessoas, sair mais, viver como os demais adolescentes da sua idade. O que a mãe não entende é que ela não é uma adolescente comum. Sua alma sombria é incompreendida. Sua solidão profunda é a melhor companhia que ela poderia ter. Ela precisa de muito mais do que conversas superficiais sobre flertes e rapazes. Vanessa ama as letras, os poemas, os dias nublados. Ama os livros, o caos do seu quarto, e as aulas do professor Strane. Mas ela está desesperada para ser vista, para ser amada, para ser adorada. Em sua ânsia, ela reconhece no professor de 42 anos outra alma soturna e conturbada. Ela deixa de ser a simples Vanessa, adolescente solitária e sem amigos. Ela agora é a Vanessa de Strane. Uma menina se transformando em uma mulher. Uma musa sedutora, capaz de corromper mesmo o homem mais correto. Em suas memórias, o que ela viveu ao lado do professor foi uma ardente paixão. O que Vanessa ainda não entende, é que essa não é uma história de amor…


Esta certamente é a melhor obra que eu tive o prazer de ter em mãos nos últimos tempos. O que Kate Russell fez nesse livro é completamente absurdo. É genial. Arrebatador. Da primeira a última linha, cada palavra bem colocada, cada frase estrategicamente posicionada, cada detalhe, cada nuance, é um presente para nós leitores. A obra é de uma qualidade sem precedentes. É de encher os olhos, a mente, o intelecto. Eu estou completamente apaixonada por esse livro e espero conseguir colocar nesse texto toda a grandiosidade que nos foi trazida pela Editora Intrínseca.

Eu queria entender como a autora conseguiu transitar tão bem na tênue linha entre o romance e o abuso. Vejam bem, o livro não conta uma história de amor, a autora em nenhum momento romantiza a pedofilia, o abuso emocional e sexual, muito pelo contrário, fica implícito o que está acontecendo desde o primeiro momento. Porém o livro é narrado em primeira pessoa, e Vanessa acredita fielmente que viveu e vive uma linda história de amor. Ela é quem nos conduz por sua trajetória. O que ela viveu foi pesado, denso, e assim como a alma dela, totalmente sombrio.

Eu nunca teria feito aquilo se você não quisesse tanto, dissera ele. Parece uma ilusão. Que menina iria querer o que ele fez comigo? Mas é a verdade, quer alguém acredite, quer não. Atraída por aquilo, por ele, eu era o tipo de menina que não deveria existir: a louca para se jogar na frente de um pedófilo.

E é por isso que fiquei tão impressionada com a capacidade da autora em nos contar duas histórias diferentes em uma única narrativa. O que nós vemos é totalmente diferente do que Vanessa vê. A protagonista é extremamente complexa. É uma narradora confiável, já que ela nos traz todos os fatos conforme eles aconteceram, mas ao mesmo tempo é totalmente ingênua em suas interpretações. Ela é uma vítima, mas acredita ser a culpada. O que fica nítido para o leitor, é que ela precisa acreditar que é a culpada para conseguir sobreviver a tudo o que experienciou enquanto era apenas uma criança. A leitura exige empatia e principalmente estômago. É desconfortável e sufocante. Kate não precisou usar palavras chulas para chocar ou desestabilizar o leitor. A força do seu enredo foi o suficiente para que eu fosse transportada para a pele da protagonista e presenciasse em primeira mão um jogo asqueroso de aliciamento e perversão.  Estamos na pele de Vanessa e ao mesmo tempo na mente nojenta de Strane. Ele jamais nos conta sua visão dos fatos, e sinceramente, nem faz falta já que a obra é completa ao nos entregar um texto bem elaborado com início, meio e fim.

Os capítulos alternam entre passado e presente. É como acompanhar duas protagonistas diferentes e ao mesmo tempo idênticas. A Vanessa de 15 anos, cheia de sonhos, desejos e aspirações, sendo sugada para um turbilhão de emoções corrompidas, e a Vanessa de 32 anos, uma mulher destituída de alma. Ela se tornou uma casca vazia, que observa os fatos a sua volta com indiferença e revive o passado numa busca incessante pelo sentir. As duas totalmente consumidas pelo mesmo homem.

Um abuso não é só um episódio na vida de um indivíduo e Kate Russell não nos conta apenas uma história. A autora mostra com grande maestria as cicatrizes deixadas por um trauma desse nível. Ela nos mostra o antes, o durante, o depois. É agridoce acompanhar os sentimentos da personagem. Você sente pena da Vanessa de 15, mas em alguns momentos vai sentir raiva da Vanessa de 32. O livro é um prato cheio para qualquer estudante de psicologia. A profundidade dos pensamentos da protagonista nos deixam em êxtase. Cada virar de página é encontrar um novo ponto a explorar. O leitor se torna o juiz e o advogado, e Vanessa mesmo sem saber está desesperada por uma absolvição.

Porque, por mais que às vezes eu use a palavra abuso para descrever certas coisas que foram feitas comigo, na boca de outra pessoa ela se torna feia e definitiva. Engole tudo o que aconteceu. Engole a mim e todas as vezes que eu quis, que eu implorei.

Eu me vi na Vanessa de 15 anos. Deslocada, querendo ser especial, querendo ser amada, querendo ser aceita. E me vi na Vanessa de 32, convivendo com demônios dolorosos que gritam no fundo da mente. Não é preciso viver o que a protagonista viveu para sentir suas dores e anseios, basta ter empatia e se deixar levar pela escrita fluida e poderosa de Kate. Não há muito mais o que dizer sobre o livro. Ele não conta uma aventura ou aborda a jornada acidentada de um herói rumo ao sucesso. E ainda assim, prende do início ao fim. É um retrato fidedigno de um horror bastante real enfrentando por muitas crianças e adolescentes da nossa sociedade. Apesar de ser delicado ao mostrar os fatos, já que eles passam pelo filtro de uma protagonista apaixonada, absolutamente nada é capaz mudar o que foi vivenciado por ela. Abuso, manipulação, pedofilia. O livro é forte porém extremamente necessário. Os dados não mentem. Em 2018 o Brasil registrou 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Mais de 3 casos por hora.

Talvez eu não tenha sido amada o suficiente. Pode ser que essa falta de amor tenha dado origem à solidão que ele viu em mim.

Minha Sombria Vanessa mostra também um tipo mais complexo de abuso, o psicológico. A protagonista é manipulada, preparada para o abuso. É seduzida em um flerte aparentemente inofensivo, mas totalmente maligno e destrutivo. Ela é levada a acreditar que é amor. Mas não parecer um abuso não muda o fato de que ainda é um abuso. O que levanta uma série de outros questionamentos. Qual é a diferença de idade que podemos considerar justa para se vivenciar um relacionamento? Como julgar a maturidade? A Vanessa de 15 anos não tinha maturidade emocional para enxergar o que estava acontecendo, mas a Vanessa de 32 anos também não consegue enxergar. Como se ela quisesse tanto um amor, que precisasse enxergar naquela relação doentia, uma espécie de amor.

Vanessa é  levada a acreditar que é especial por aceitar viver essa história. E depois é chantageada. E quando já não serve mais, descartada. Ela está emocionalmente destruída e é impossível não virar a última página e se sentir ao menos um pouco da mesma forma. O livro tem muitos gatilhos, precisei ler em doses homeopáticas para conseguir engolir as palavras amargas. O desfecho não trará a paz que o leitor tanto procura, e ainda assim é esperançoso a seu próprio modo. Seria um crime falar em felicidade após ver Vanessa se desnudar de todas suas dores e mágoas. Mas é libertador. Sem sombra de dúvidas, eu recomendo essa leitura.

  • My Dark Vanessa
  • Autor: Kate Elizabeth Russell
  • Tradução: Fernanda Abreu
  • Ano: 2020
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 432
  • Amazon

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