De antemão, consabido que Graciliano Ramos é um dos maiores escritores da língua portuguesa, e com elevado respeito friso ser meu conterrâneo. Sem dúvida, sua obra complexa e de imenso peso regional e cultural o tornam um verdadeiro Dostoiévski das terras tropicais.

Publicado em 1936, Angústia é uma obra repleta de micronarrativas autobiográficas cujo pano de fundo é o Brasil da República Velha (1889-1930). Junto a isso, temos Luís da Silva, funcionário público, escritor e jornalista nas horas noturnas, residente em Maceió, Alagoas, que passa pela vida feito sombra: mecanicamente, sem demonstrar interesses particulares, seguindo uma rotina fixa que o torna um velho arrastador de chinelos; revoltado contra o estado das coisas e entusiasmado pela transformação revolucionária da sociedade.

Sob a forma de fragmentos, Luís narra seus trinta e poucos anos de vida – em um jorro de consciência que nos leva a alternar entre o passado/presente e real/fictício – que antecederam o encontro arrebatador com sua provocadora vizinha, Marina, que o fisga prontamente feito peixe no anzol.


No decorrer deste romance, o leitor irá encontrar uma mistura de lembranças, desgosto, remorso, ódio, amor não correspondido e um crime terrível que levam ao desfecho da loucura interna do narrador/personagem. Confesso que faz mais tempo do que gostaria desde meu último Graciliano, e embora isso tenha me deixado triste me forneceu a oportunidade de “esquecer” como era sua escrita. Eis que, de modo geral, seus livros são extremamente bem construídos, os personagens são tão minimamente desenvolvidos que chegam a ser palpáveis; sem dúvida, um verdadeiro maestro na escrita nacional com o seu regionalismo muito bem firmado.

Em Angústia, temos uma obra digna de estudo e louvor. Sua leitura pode ser cansativa para alguns, mas encare como um desafio que precisa ser concluído. O enriquecimento obtido após ler este livro é fenomenal visto que o autor o fará encarnar na pele do narrador e ficar, literalmente, sem fôlego em mais de uma ocasião. Mas não tema, caro leitor! Seu prêmio será o conhecimento de uma linguagem mais pura, alguns fatos autobiográficos, reflexões bastante profundas postas com simplicidade das relações e sentimentos humanos.

Nesse romance, teremos o clássico triângulo amoroso trabalhado de forma bem mais complexa que o habitual. Aqui não veremos apenas a luta pela atenção e amor da mocinha ou algum duelo cavalheiresco pela honra dela. Teremos uma imensa dificuldade financeira, falta de caráter, desejo por uma espécie de glamour fajuto que torce bons valores, fofocas e a loucura que progride para crimes impulsivos.

Somos apresentados a Luís da Silva que é a personificação do título desta obra; um homem inteligente e de boa índole cujo passatempo é a obsessiva arte da reclamação. É impressionante o quanto ele é inconformado com cada aspecto da vida e no quanto gasta seu tempo reclamando de absolutamente tudo; no entanto, em momento algum se esforça para fazer algo acontecer, simplesmente passa pela vida como uma máquina, o que o torna um homem angustiado.

Deite-me na espreguiçadeira, acendi um cigarro, abri o livro e comecei a ler maquinalmente. De quando em quando bocejava, suspendia a leitura incompreensível.

Até o bendito dia que ele está no quintal da casa que mora de aluguel, na rede, a ler um livro, e vê sua vizinha de cabelos de fogo cuidando das roseiras. Imediatamente ele se interessa por Marina e sua vida passa por uma reviravolta, visto que a moça o seduz para ganhar cada vez mais presentes em troca de alguns “amassos” e de uma promessa de casamento. O pobre coitado do Luís, apaixonado por Marina, gasta muito mais do que ganha e logo se vê afundando em um mar de dívidas impossíveis de pagar, sendo honesto com sua noiva a respeito dos gastos exagerados.

Contudo, superficial e interesseira que é, Marina logo evita cada vez mais o noivo e passa a se engraçar de um “conhecido” de Luís, milionário empresário e cheio de lábia, com fama de conquistador, Julião Tavares, que logo passa a frequentar a casa de Marina engatando em um romance com a mesma. Traído e endividado, Luís rompe o noivado com a vizinha e recomeça sua rotina miserável de reclamação dessa vez imbuída em ódio e ciúme. Em sua cabeça, Marina irá voltar para ele se Julião aparecer morto. O romance segue nesse vai-e-vem até Julião Tavares sumir da casa de Marina por ela estar grávida culminando na paranoia e loucura de Luís que, obcecado por um desfecho, movido pelo ódio ao rival, resolve fazer justiça com as próprias mãos, cangaceiro e coronel sertanejo que é.

Ler Angústia é compreender os aspectos que se fazem mais escondidos na psique humana, o que este autor fez muito bem. Com uma superabundância dos detalhes sendo alimentada pela imaginação enraivecida do apaixonado narrador, a compulsão pela repetição de momentos no passado/presente sendo impulsionada pela escrita do paranoico e obsessivo Luís da Silva, o amor e o crime derradeiro foram os pontos cruciais da vida do angustiado em Maceió. Temos em sua memória a ideia fixa, posta por seu pai quando criança no interior rural, de que qualquer aproximação com o outro corromperia sua alma e corpo.

De pessimismo quase irracional, temos nesse romance um apanhado de contrapostos das décadas passadas: a miséria econômica que os jovens provenientes do campo encontravam na cidade, sem falar nas diferenças de costumes e valores, eram apresentadas como se a organização feita no mundo fosse injusta, cruel e caótica, fazendo o personagem se contentar com apenas a boa sorte.

Em Graciliano Ramos, temos uma tapeçaria de personagens e vivências cruéis e, quase sempre, sem finais felizes que requerem do leitor uma demanda de tempo e calma de espírito ao ler suas obras. Feito Dostoiévski, o leitor encontrará o sofrimento do homem perante um mundo desequilibrado, uma donzela que apenas provoca e até conterrâneos que se consideram superiores à persona que for retratada na obra.

Tantos caminhos errados na vida! Quem sabe lá escolher com segurança os atalhos menos perigosos? A gente vai, vem, faz curvas e zigue-zagues, e dá topadas de arrancar as unhas. A água lava tudo, as feridas mais graves cicatrizam.

Se você busca uma leitura densa, rica de sentimentos, repleta de ambientações típicas do sertão brasileiro, com um misto de drama, suspense e uma grande pitada de realidade, este livro será muito bem-vindo na sua vida. Tenha em mente, caro leitor, que essa experiência será única e valerá muito a pena chegar ao final dessa jornada. Angústia irá pegar você de jeito, irá torcê-lo como roupa molhada, sacudi-lo brutalmente e jogá-lo estendido no varal do cerne humano.

  • Angústia
  • Autor: Graciliano Ramos
  • Ano: 2019
  • Editora: Record
  • Páginas: 368
  • Amazon

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