O último romance escrito e publicado por Jane Austen é uma adorável história de amor e uma verdadeira exposição dos preconceitos, peculiaridades e pensamentos de uma sociedade inglesa que recebia o século XIX com receio das transformações que se anunciavam no horizonte. Embora sua obra demonstre costumes, vivências e detalhes referentes aos contextos socioculturais comumente observados nos queridinhos e atuais romances de época, de Razão e Sensibilidade a Orgulho e Preconceito, Jane Austen depositava, intrínseca e sutilmente, comentários acerca da realidade que desafiava a trajetória de suas preciosas heroínas. É em Persuasão, contudo, que acompanhamos a delimitação de um distanciamento despreocupado perante a opinião e visão do público geral. É em Persuasão, também, que observamos uma Jane Austen confiante o suficiente para oferecer aos leitores suas próprias percepções acerca de todos os costumes, preconceitos e equívocos de uma classe social acostumada a ter tudo à troco de nada. E assim, antes mesmo de abordar o enredo e características de sua ultima narrativa, ressalto que, dentre o romance que aquece o coração e os inusitados encontros sociais, é o acesso aos pensamentos e questionamentos da escritora, por meio das palavras que habilmente alinhou e ordenou duzentos anos atrás, o que verdadeiramente brilha em Persuasão.

“Palavra de honra, Srta. Anne Elliot, você tem um gosto extraordinário! Tudo o que enoja outras pessoas, companhias vulgares, quartos miseráveis, atmosfera desagradável e amizades repugnantes é interessante para você.”

Fascinado por genealogia, Sir Walter Elliot é leitor de um único livro, o curioso e questionável “Anais dos Baronetes”. É neste volume de relatos mesquinhos que recorda a trajetória financeira e os relacionamentos da família. Ainda que não evidencie as maneiras com que conquistaram tal posição social, é provável que, a fim de se reconhecerem como e enquanto sobrenome tradicional, a família tenha originado suas riquezas do processo de cercamentos que, para além de definir os limites de propriedades rurais lucráveis, expulsou pequenos produtores dos terrenos férteis que possuíam, contribuindo com injustiças e problemas sociais que se elevariam exatamente no século XIX, com o advento da Revolução Industrial. Ignorando a procedência, mas se aproveitando de toda a riqueza e luxo que o Solar de Kellynch, e as propriedades rurais, lhe ofereciam, Sir Walter Elliot valorizava as aparências, o relacionamento por interesses, a beleza da juventude que, em sua caduquice de meia idade, insiste em afirmar não o ter deixado. Tais princípios foram transmitidos e assimilados pela filha mais velha, a solteira, preconceituosa e bela Elizabeth.

Dignos de sua própria hipocrisia, pai e filha ignoram, desmerecem e destratam Anne Elliot, a filha do meio. Esta, por sua vez, é recebida, amada e educada pela melhor amiga de sua falecida mãe, a peculiarmente adorável Lady Russel. Leitora atenta, sensível e reflexiva, que questiona os fundamentos que regem uma parcela considerável das dinâmicas sociais, Anne carrega as mágoas de um casamento impossibilitado por preconceitos de classe, uma vez que o objeto de seu amor, quando da oficialização da proposta, pouco valor econômico expressava para a família. Mas o destino prega peças nos arrogantes e, quando os gastos de Sir Elliot ultrapassam sua renda anual, obrigando-o a reduzir despesas ou mudar-se para uma residência menor, é a irmã de Frederick Wentworth quem alugará o majestoso Solar de Kellynch.

Após a mudança de Sir Elliot e Elizabeth, Anne segue para a agitada e acolhedora residência da irmã caçula. Mãe de dois filhos e dona de um temperamento inconstante, é por meio das caminhadas, jantares e reuniões sociais proporcionadas por Mary Musgrove que Anne Elliot reencontra o antigo amor, descobrindo que este se transformou em importante oficial da marinha. Deste modo, por meio de um acerto de contas literário, uma estruturação de acontecimentos e uma verdadeira demonstração de que nenhuma de suas heroínas chegaria ao desfecho sem um encantador “final feliz”, Jane Austen delineia a oportunidade para que nossa protagonista encontre uma segunda chance, superando a arrogância da irmã mais velha, os princípios decadentes do pai, os preconceitos de classe a hipocrisia de uma sociedade acostumada a distanciar-se do trabalho, acreditando que novos ricos e a crescente burguesia não seria capaz de modificar a rigidez de uma estrutura em ruínas.

Com habilidade narrativa, talento de escrita e uma perspicaz observação da realidade, Jane Austen constrói um romance que aquece o coração do leitor, demonstrando que o verdadeiro amor perdura, supera as barreiras do tempo e espaço, ultrapassando aparências e localizando-se na essência de cada indivíduo. Em Persuasão, amar é voltar-se para a humanidade que resiste em cada um de nós. É desviar-se de aparências, interesses, preconceitos e contextos culturais, econômicos e políticos, compreendendo que estruturas sociais não determinam o valor de uma vida.

Por entre personalidades desprezíveis, personagens irritantes, tratamentos questionáveis, princípios equivocados e uma arrogância que cega para as cores e magia de um mundo tão diversificado, encontramos a realidade que pulsa através dos detalhes e nuances da ficção. E, seja por reconhecer o chamado da morte se aproximando, seja pela maturidade e segurança que somente o transcorrer dos anos são capazes de proporcionar, seja decepção perante a sociedade que possibilitou seu nascimento e criação, sejam por tantos infinitos e peculiares motivos, foi em seu último romance que Jane Austen arriscou livrar-se das percepções de gênero e classe social e, enquanto oferece esperança e amor para seus leitores, levanta um espelho que escancara nuances de uma sociedade confortavelmente estruturada por um rígidos costumes, mesquinha hipocrisia, curioso alheamento social, encantadoras aparências e uma porção de brocados dispersos por bailes e jantares!

  • Persuasion
  • Autor: Jane Austen
  • Tradução: Mariana Menezes Neumann
  • Ano: 2021
  • Editora: José Olympio
  • Páginas: 266
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