Soul chegou de mansinho em meio aos limites desalentadores de um ano conflituoso marcado pelas crises e consequências de uma pandemia. O longa nos encontrou esgotados, desamparados, ansiosos por notícias positivas, por mudanças acalentadoras, por superar as lembranças de todos os momentos em que precisamos suspender ou mesmo abandonar nossos sonhos. Curiosamente, Soul nos obrigou a olhar para alguns dos aspectos mais difíceis de nossas vidas, para algumas de nossas memórias mais conflitantes, para alguns de nossos sentimentos mais sombrios, promovendo a construção de intimas correlações que, como tantos outros exemplos de encantadoras histórias, se percebem ampliadas e reforçadas sempre que retornamos aos seus domínios. De pouquinho em pouquinho a animação demonstrou a profundidade de suas mensagens, a complexidade de seus questionamentos, o valor de suas reflexões e, como adorável criação da Pixar que é, inseriu, uma vez mais, traços de um enredo para adultos ao longo do mais adorável filme infantil.

Partindo de uma premissa razoavelmente simples, da introdução de personagens cativantes e do contraste entre a realidade vivenciada por nossos ansiosos sentidos humanos e as experiências proporcionadas por um extraordinário plano cósmico pré-vida, somos levados a questionar nossas razões de viver, nossos motivos para levantar todos os dias e enfrentar cada desafio. Ao mesmo tempo, somos instigados a refletir sobre nossas intermináveis maneiras de aproveitar as segundas chances que nos são oferecidas, reposicionando nossas prioridades, sonhos, motivações, destinos e propósitos a fim de compreendermos se estes elementos realmente nos pertencem enquanto seres unicamente especiais em suas essências, necessidades e interesses.

Soul nos apresenta a trajetória de Joe, professor de meia idade, regente de aulas de música para estudantes do ensino médio em uma escola de Nova Iorque. Joe anseia pelo momento em que sua estrela brilhará incandescente, pela oportunidade de ouro, pelos segundos preciosos da descoberta, pela chance de demonstrar ao mundo seu talento com a música, com o piano, com o jazz. Frustrado com a vida, ele acredita ser seu propósito tocar como nunca tocou, dar vida aos sons e harmonias do jazz, fazer vibrar os corações em sincronia com sua melodia cativante.

Quando a sorte de Joe finalmente é revertida, quando finalmente recebe uma oportunidade irrecusável, quando o querido professor de música é indicado para seleção do novo pianista da famosa Dorothea Williams, as surpreendentes mãos do destino entram em ação e atrapalham seus planos. Após um trágico acidente nosso personagem segue para os domínios do além vida, sendo transfigurado para sua configuração de alma. Desconhecendo os princípios e direcionamentos misteriosos do universo, ele incansavelmente procura maneiras de retornar para a terra, para o seu corpo, para sua vida que se alinhava. É assim que Joe conhece 22, alma que nunca encontrou motivações para ingressar e enfrentar a maravilhosa aventura que é viver… e deste encontro, de suas implicações e desencontros nasce nossa história, nascem as revelações de um personagem fixado em concretizar seu propósito, nasce a coragem de uma alma para enfrentar os desafios e se permitir tentar, nascem nossas conexões com uma história que, de mansinho, nos questiona acerca de como estamos vivendo.

Percorrendo caminhos semelhantes aqueles trilhados por Divertidamente, Soul trabalha maravilhosamente bem com temáticas profundas, complexas, sensíveis a toda vivência humana. De questionamentos acerca de nossos propósitos no curioso e intrincado plano do universo a reflexões sobre as fagulhas que carregamos em nossa essência. Do debate acerca dos elementos e sensações que verdadeiramente nos permitem sentir-se realizados a busca incansável por objetivos. Da expressão e valorização da diversidade a representatividade tão necessária e urgente, a animação se apresenta repleta de camadas, de nuances, completa em sua simplicidade profunda, complexa em suas mensagens essenciais, tocante em suas lições por tantas e tantas vezes esquecidas.

Equilibrando harmoniosamente os momentos, as cenas e atmosferas lúdicas que trabalham conceitos, princípios e temáticas complexas, a animação nos apresenta o além vida, os perigos de abandonar todas as oportunidades de tentar novamente, as dores que causamos com nossas palavras, a diferença que podemos fazer na vida de alguém. Por meio de paletas de cores, de cenários simplificados, da redução de detalhes e da inserção do adorável na construção da atmosfera, a animação materializa o complexo, expressando o profundo de maneiras com que possamos alcançar sua compreensão da forma mais sutil e leve possível. Ao longo de anos e anos, de produções e produções, de lançamentos e lançamentos a Pixar aprimorou a arte de transmitir profundas mensagens e reflexões por meio de razoavelmente simples estratégias, garantindo nossa apropriação de suas mensagens.

Nesse contexto, cada detalhe, cada aspecto, cada característica nasce e se integra ao todo com o intuito de nos propiciar experiências. Como em todas as suas criações, as cores, formas, texturas, trilha sonora, atmosferas, cenários, enredo e mensagens se unem para nos encantar, para plantar pequenas sementes de possíveis mudanças, para nos permitir relembrar o que nos torna humanos, o que é viver, o que é amar, o que é enfrentar o mundo em busca de algo, seja esse algo o que for!

Dentre inúmeras considerações técnicas que poderia mencionar, as quais, em minha falta de aptidão muitas vezes tento expressar com palavras falhas, ouso ressaltar, porém, a maneira com que os planos do além vida e da realidade interagem entre si, infiltrando seus elementos e essência em tudo o que os definem. É assim que, sutilmente, a realidade vivenciada por Joe se transforma em experiência transformadora. É assim que, sutilmente, o equilíbrio e comodismo aparente de 22 se corrói. Por meio de alterações de perspectivas, de diálogos tocantes, de mensagens desvendadas e cenários encantadores, os mundos de Joe e 22 se transformam … e com eles, nossos próprios mundos também se alteram.

Nesse sentido, Soul representa nossas dúvidas, nossos anseios, os desafios que enfrentamos. Representa nossas batalhas, nossos conflitos por concretização de propósitos, mas também nossa busca por nos perceber realizados, confiantes e contentes em nossas trajetórias tortuosas. Soul é a música que faz nossa vida se harmonizar, nosso coração bater e nossos pensamentos se alinharem. Soul são as conexões que efetivamos, são as relações que firmamos, as palavras que proferimos ou guardamos ardentes em nosso peito. Soul demonstra nossas dores, nossos desafios e conflitos, mas também nos transforma, nos oferece aconchego, calor e empatia pela jornada, pela vida!

Em meio aos meses, as semanas e dias finais de 2020, após enfrentarmos perdas, dores, traumas, esgotamento e as diversas implicações de um ano de pandemia, Soul nos possibilitou refletir sobre a vida que ainda existe em nossas veias, sobre os caminhos que estamos trilhando, sobre as questões essenciais que transformam nossa existência em jornada e nossa jornada em fagulhas de propósito e paixões.

  • Soul
  • Lançamento: 2020
  • Com: Jamie Fox; Tina Fey; Graham Norton; Rachel House; Alice Braga
  • Gênero: Animação; Aventura
  • Direção: Peter Docter e Kemp Powers

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