Quando era pequenina e ainda contava com os saberes e conselhos de minha avó materna, encontrei um calendário contendo os dias de cada santo canonizado pela Igreja Católica. Em minha curiosidade infantil, segui ávida na direção do mês de maio a fim de conhecer os nomes das santas e santos que compartilhavam meu mês de aniversário. Foi assim que, por entre as páginas amareladas e rápidas anotações de minha avó, encontrei pela primeira vez o nome de Joana D’Arc.

“Sou uma soldada, sou madrinha de muitos filhos e filhas deste reino. Sou a protetora de sonhos. Todos na França só precisam dizer meu nome ou pensar em mim para não ter mais medo.”

Anos após o breve primeiro encontro, retornando para a casa de Vó Nina com domínio das habilidades de leitura e escrita, fui agraciada com o empréstimo de uma espécie de livrinho de horas que, além das orações fervorosas de minha avó, contava histórias sobre as santas e santos do calendário que minha versão mais nova descobriu com tanto encantamento. Foi assim que, novamente por entre páginas amareladas, conheci a história e o mito da jovem camponesa que lutou na Guerra dos Cem Anos para libertar o território francês do domínio inglês.

Do momento exato em que folheava as páginas do calendário até a ocasião em que minha versão de 31 anos senta de frente para o computador e digita as palavras que você agora lê, Joana D’Arc me acompanhou. De tempos em tempos, como um verdadeiro espírito conselheiro que aparece quando menos se espera, a santa guerreira ressurgia em minha mente, era citada em textos que lia, inspirava as produções musicais e visuais que observava atentamente.

Foi assim que passei a compreender as nuances de mito ao longo de sua trajetória, aceitando sem julgamentos e com muito carinho os diversos tipos de relatos e pareceres de que ouvia vozes divinas, talvez nunca tenha tirado a vida de outro ser humano e foi avisada por espíritos (vivos, mortos ou celestiais) que seria capturada pelos ingleses em sua última empreitada. Verdadeiros ou falsos, contos míticos ou históricos, todo e cada detalhe costurado a história de Joana D’Arca permitiu sua transformação na figura emblemática que hoje acalenta tantos corações e abençoa o território francês.

Minha história com a santa guerreira é o motivo pelo qual afirmo que Katherine J. Chen precisaria cometer os maiores deslizes narrativos e piores espécies de blasfêmias para frustrar minha leitura. Além disso, em meu apego por personagens e ferrenha criticidade quanto a necessidade de exploração de determinadas estratégias narrativas, existiam pouquíssimos elementos que, se empregados pela escritora, realmente decepcionariam a crença de que a Idade Média francesa foi capaz de oferecer uma das maiores lendas feministas que qualquer criança curiosa, encantada e em busca de inspirações poderia desejar.

Graças ao talento e habilidade de Katherine J. Chen, mas também aos anos que passou em processo de pesquisa histórico bibliográfica para conhecer os detalhes da trajetória de Joana, a experiência não poderia ter sido melhor e toda e qualquer expectativa se viu superada pelas características de romance histórico e realismo mágico que permeiam todas as páginas deste livro.

Ao longo de 384 páginas acompanharemos os momentos e acontecimentos que, na mais encantadora costura entre informações históricas e manipulação ficcional, direcionaram a infância e adolescência de Joana para o encontro com aquele que, graças às suas vitórias em campo de batalha, viria a ser coroado Carlos VII.

Por meio de uma escrita fluída, repleta de cenários e imageria que inter-relaciona a visão contemporânea sobre eventos do passado e aquilo que comprovadamente sabe-se ter consolidado e ocorrido, observamos a realidade e crueldade enfrentada pela parcela mais pobre dos países em guerra. Acompanhamos as maneiras como pais tratavam seus filhos homens e mulheres, além da normalização da violência e agressão contra crianças que, muitos e muitos anos no futuro, ainda seria tratada como pequenas versões de adultos. Comprovaremos ou entenderemos, caso ainda sejamos leitores desconfiados do mundo que nos cerca, que almas bondosas existem e sobrevivem por todos os lugares, necessitamos apenas encontrá-las e, quando assim o fizermos, aproveitar ao máximo o tempo que nos foi oferecido em sua companhia.

Nas mãos de Katherine J. Chen e, ao contrário do que alguns leitores e comentaristas literários declararam, Joana D’Arc não perde a santidade, apenas recupera o aprofundamento e humanidade que anos de trajetória histórica e tratamento mitológico tomaram de sua figura.

Como tão sabiamente diria minha Vó Nina, livremente parafraseada por sua neta: santas e santos adquirem a importância e contorno de celestialidade que possuem por, apesar de suas falhas e erros, superarem os maiores desafios e enfrentarem as rachaduras de sua própria humanidade em uma espécie de busca ou luta pelo bem maior.

O ser mais iluminado e altruísta deste mundo cometeu ou cometerá alguma espécie de falha, erro, pecado ou injustiça, é isso que nos torna humanos. Mas é a superação, o exemplo que oferecem e as mensagens que transmitem uma vez que suas vidas se findam, que os aproximam da santidade. E tudo isso persiste na personagem Joana D’Arc.

Se Joana é frequentemente agredida pelo pai e não poupa esforços para se distanciar ou mesmo machucá-lo com suas palavras afiadas, ela também é gentil e solidária com os animais e crianças necessitadas da vila em que nasceu. Se a jovem aprendiz de soldada emprega seus dons para humilhar homens preconceituosos e injustos, ela também utiliza sua força para inspirar e resguardar o futuro dos habitantes de um reino. Se a santa guerreira permite que o orgulho cegue sua visão dos perigos da guerra, das traições e interesses da corte, além do mundo que não se vê preparado para sua existência, ela também é humilde o suficiente para admitir e pagar pelos erros que cometeu.

Deste modo, a Joana D’Arc de Katherine J. Chen, e quem saberia dizer se a verdadeira Joana das histórias e mitos, permanece segura e serena em sua santidade, tanto quanto em suas falhas. A santa guerreira mantem seu posto de inspiração, transmitindo mensagens e reflexões feministas para as garotas e jovens da contemporaneidade enquanto ensina novos leitores algo que minha avó, em seu fervor pela Igreja Católica e crença inabalável na existência divina, compreendia de corpo e alma: uma pessoa santa não passa de uma pessoa cujo exemplo de resiliência, bondade, justiça e amor nos podem ser uteis para amadurecer e, quem sabe, nos tornarmos nossa própria versão de santos e santas.

É por esse motivo que a personagem principal não atinge, nas páginas deste livro, seu triste e injusto fim. É por esse motivo, também, que ela realiza os mais maravilhosos e altruístas feitos enquanto age como a humana repleta de defeitos que sempre foi. Joana D’Arc se despe dos mantos românticos e se aproxima do leitor. Por permitir a identificação ela também amplia as chances de que o leitor reflita, questione e aprenda algo com sua trajetória tortuosa e, assim, pouco nos importa se falamos de santos, mitos, lendas, fato histórico ou fantasia, seu poder e divindade está no fato de olharmos para si e crescermos, amadurecermos e melhorarmos no final da jornada.

Avaliação: 5 de 5.

  • Joan
  • Autor: Katherine J. Chen
  • Tradução: Flávia Souto Maior
  • Ano: 2023
  • Editora: Minotauro
  • Páginas: 384
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