Leitores esporádicos, bem como aqueles que recentemente descobriram o Estante Diagonal, talvez não conheçam todo o amor que possuo com relação a leitura de biografias e autobiografias. A verdade é que somente aqueles que tiveram a oportunidade de ler biografias bem escritas e fundamentadas serão capazes de reconhecer as diferenças existentes entre o ato de observar a trajetória de um personagem fictício e acompanhar o percurso de uma personalidade humana, construída em meio a tantos desafios, tristezas, conquistas e encantamento. Existem mensagens e conhecimentos que somente as biografias serão capazes de transmitir e, embora não seja de meu feitio desmerecer uma obra para elevar outra, ouso mencionar que a leitura deste tipo de livro promove um exercício diferente e muito importante de empatia, além de possibilitar que nossos olhos se abram para contextos e eventos históricos que, em muitos casos, encontram-se cercados por discursos posicionados em bases duvidosas.

Por defender com todo meu coração a leitura de biografias, por reconhecer que em meio às suas páginas sempre seremos capazes de encontrar informações sobre períodos históricos localizados cada vez mais distantes no passado e, por acreditar nas mensagens e visão crítica que estas obras transmitem, penso não se tratar de nenhuma surpresa meu encontro com a figura de Maria Stuart, rainha escocesa tantas vezes delineada com os moldes de santa e, para aqueles que tem a lucrar com sua condenação, destacada como a mais terrível das pecadoras.

Sempre que se quer deter a verdade pela força, ela se defende pela astúcia. Se não a deixamos falar de dia, ela fala no silêncio da noite.

No entanto, preciso ressaltar que a leitura da biografia de Maria Stuart, publicada em 2018 pela Editora Record, me apresentou um autor cuja escrita encantadora, obras publicadas e trajetória de vida é tão importante que não poderia deixar de redigir um parágrafo, no mínimo, para ressaltar sua relevância. Stefan Zweig, nascido em Viena no ano de 1881, doutor em filosofia e responsável por biografias de personalidades que vão desde Maria Antonieta até Nietzche e Dostoievski, também é reconhecido por seus diversos ensaios e novelas, muitos publicados no Brasil pela Editora Zahar. Da mesma maneira com que diversos escritores, pensadores e pesquisadores, Zweig exilou-se quando da ascensão de Hitler na Alemanha, firmando residência no Brasil e, infelizmente, vindo a cometer suicídio juntamente da esposa no ano de 1942, três anos antes da queda de Hitler.

Como tantos antes de mim destacaram belamente, Stefan Zweig possui uma forma apaixonante e única de redigir as biografias pelas quais tornou-se responsável. Em suas mãos a trajetória de personalidades históricas transformam-se em verdadeiras narrativas literárias cuja escrita impecável, cuidado com os detalhes e respeito para com a história encantam o leitor que se aventura por entre os peculiares e inusitados eventos observados ao longo da vida de personagens reais. É mágico acompanhar suas palavras e a maneira com que traça a linha da vida de mulheres como Maria Stuart, esta rainha escocesa cujo temperamento e amores possibilitaram o direcionamento para um trágico e triste fim, ou mesmo Elizabeth, a rainha inglesa idolatrada por muitos, porém, cujas escolhas e pensamentos levaram católicos a morte e tortura, além de esconder por trás de seus sorrisos estratégias duvidosas e a constante necessidade de manter a imagem que hoje perpetuamos.

Para além da escrita encantadora, digna de um grande escritor, o que também chama a atenção nesta biografia é o respeito inegável do pesquisador perante todo e cada evento apresentado. Stefan Zweig evita consolidar qualquer julgamento sem demonstrar bons fundamentos, seu respeito é tamanho que, mesmo quando Elizabeth e Maria Stuart tomam as piores decisões ou se deixam levar por pensamentos de terceiros, busca-se indagar acerca dos sentimentos vigentes nos corações fortes e determinados destas rainhas. Uma vez que não possui todas as respostas, justamente por tratar-se de um período histórico longínquo em que diversos documentos foram perdidos ou constituem-se de maneira duvidosa, o autor nos leva por questionamentos afim de tentar entender as possíveis motivações destas mulheres, as manipulações que colocaram em prática ou das quais foram alvo, os sentimentos que possivelmente invadiam seus corações. Contudo, o respeito que se vê pelas figuras femininas muitas vezes não se estende para os homens desta história.

Em diversos momentos o autor é incisivo quando delineia a personalidade de homens específicos, nunca relativizando sua culpa, motivações ou estratégias. Do mesmo modo, desconsidera depoimentos e documentos baseados em informações obtidas através de tortura. Quando caminhos tão desunamos são empregados com o intuito de conquistarem-se certas versões da verdade, pois um indivíduo torturado pode confessar qualquer fato ou fantasia para se ver livre do tormento, não devemos considerar válidos documentos que consideram verdade informações obtidas de forma tão vil e, neste contexto, o autor une sua voz a de diversos outros, demonstrando quão bárbaros ousamos ser quando buscamos atingir determinados objetivos.

Por fim, enquanto constrói a narrativa de Maria Stuart desde sua vida na corte real francesa até o retorno para a Escócia, seus amores encontrados e perdidos, bem como o início de sua ruína – e confesso que não é meu papel desenvolver todo e cada detalhe de sua vida, uma vez que este objetivo é a essência da própria biografia – o autor nos apresenta também detalhes, informações e características do período histórico em questão. Como toda boa biografia não encontramos apenas o percurso de uma figura histórica, mas elementos pertencentes a sua cultura, a forma como cidadãos comuns e seus governantes agiam, os conflitos religiosos vigentes, as nuances muitas vezes esquecidas pela visão mais generalista da história humana. É assim que esta obra cresce em importância e valor, demonstrando os principais motivos pelos quais defendo apaixonadamente a leitura de biografias.

Embora este texto não siga o padrão convencional das resenhas que normalmente escrevo, devo admitir que uma biografia como a de Maria Stuart não poderia ser tratada de outra maneira que não a que busquei empregar ao longo deste texto. Isso ocorre por todo e cada aspecto que ressaltei, pela escrita encantadora de seu autor, pelo cuidado no processo de pesquisa, pelo respeito para com personagens femininas históricas, pelo posicionamento político e por tantos outros elementos que não fui capaz de demonstrar em palavras. Assim, muito mais do que uma indicação para aqueles que se interessam por história e grandes rainhas, esta obra deve ser lida por tratar-se de um dos melhores e mais belos exemplos de biografias já escritas.

  • Maria Stuart Biographie Einer Königin
  • Autor: Stefan Zweig
  • Tradução: Lya Luft
  • Ano: 2018
  • Editora: José Olympio
  • Páginas: 362
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