Quais elementos, características ou detalhes transformam uma história em verdadeiro clássico da literatura? Seriam os comentários e pareceres proferidos por renomados críticos literários? Seria a existência de fórmulas específicas solucionadas por uma parcela exclusiva de escritores? Ou seria a maneira mágica e encantadora com que alguns livros parecem superar tempo e espaço, conectando-se com uma infinidade de pessoas ávidas por conhecer novos mundos, personagens e ensinamentos?

Gosto de pensar que a verdadeira essência dos clássicos reside nos domínios enunciados por minha última proposição. Com todo o meu coração – além de alguns estudos escassos acerca da questão – passei a acreditar que uma obra literária somente conquistará a posição de clássico quando demonstrar a habilidade de comunicar-se com tantos leitores quanto pudermos imaginar, quando conseguir superar as barreiras temporais e espaciais que a distanciam de leitores futuros, daqueles leitores que podem vir a encontrar magia em suas palavras. Gosto de pensar que uma classificação tão profunda, complexa e curiosa deveria efetivar-se apenas quando o livro em questão se tornar capaz de encantar mentes, sensibilizar corações e transmitir mensagens preciosas para todos aqueles que se aventuram por suas páginas. Caso contrário, como explicaríamos o fato de que histórias publicadas há 50, 100 ou 150 anos seguem cativando novos leitores? Ouso afirmar que um crítico não teria tamanho poder e que uma fórmula poderia facilmente ser substituída por outra, porém, em nossas próprias e peculiares experiências de leitura, acabamos por construir o valor de cada uma destas obras.

Permitir que um pensamento triste ou sombrio entre na cabeça é tão perigoso quanto deixar o germe da escarlatina penetrar no corpo. Se a gente o deixa ficar depois que ele entra, corre o risco de nunca mais se livrar dele pelo resto da vida.

É por meio destes prismas e pontos de vistas que observo O Jardim Secreto, livro infanto-juvenil escrito por Frances Hodgson Burnett, publicado em 1911, inspiração para uma quantidade considerável de adaptações cinematográficas e verdadeiro clássico da literatura mundial … escrito por uma mulher!

O Jardim Secreto é uma história sobre mansões misteriosas e seus inúmeros quartos, sobre jardins abandonados e a magia que os permite florir novamente, sobre os segredos que guardamos e as memórias que gostaríamos de esquecer. O Jardim Secreto é uma história sobre superação de desafios, sobre a construção das mais belas e inusitadas amizades, sobre o exercício da empatia, sobre o quanto podemos aprender com o próximo. O Jardim Secreto é, também, uma história sobre a encantadora e surpreendente fase da infância, sobre meninas e meninos mimados, sobre garotos cuja bondade encanta animais e plantas, sobre adultos que sofreram enormes perdas.

Contudo, para que essas mensagens sejam recebidas pelos corações dos leitores, faz-se necessário iniciar a jornada por entre os limites das paisagens indianas, em meio aos quartos luxuosos de uma mansão inglesa, conhecendo uma mulher que abandonou a filha aos cuidados dos criados, enquanto enfrentamos as consequências sombrias de uma epidemia de cólera. É neste contexto que conhecemos Mary, a garotinha de dez anos mimada e de pouca saúde que acreditava que todas as suas vontades deveriam ser atendidas. Por uma reviravolta estranha do destino, Mary viu-se sozinha no mundo, partindo da Índia em direção ao condado de Yorkshire, na Inglaterra, onde encontraria um novo lar na mansão misteriosa de seu desconhecido tio e, por entre reviravoltas ainda mais estranhas do destino, aprenderia a apreciar a amizade de plantas, animaizinhos e outras crianças!

Livre da supervisão constante dos adultos, das lições de álgebra ou gramática, de empregados que atendem todas as suas vontades, a menina se vê entediada, emburrada e zangada. Enquanto a charneca que cerca a propriedade sofre as mais encantadoras e maravilhosas transformações, Mary permanece ignorante para a vida que vibra lá fora. Quando, porém, uma empregada instiga a menina a sair de casa e andar por entre os jardins, respirando o ar puro do interior, permitindo que o sangue flua por suas veias, que seu corpinho mirrado se fortaleça e sua mente encontre novas atividades, um mundo novo se descortina. É por meio de suas caminhadas e passatempos, de sua curiosidade recém adquirida e de seu gênio determinado que Mary descobre a porta e a chave para um jardim secreto trancado há dez anos.

O ato de encontrar a chave, destrancar a porta e entrar nos limites do jardim secreto é tão marcante e transformador para a personagem quanto para os leitores que a acompanham. Por claramente demonstrar o cuidado da menina para com cada planta, flor e detalhe, observamos alterações em seu comportamento e a maneira com que passa a enxergar o mundo e as pessoas. Na medida em que as estações progridem e a primavera se estabelece, a garota floresce juntamente ao jardim. Neste sentido, muito mais do que absorver a vida, as cores e a energia que o sol oferece, delineia-se um processo de abandono dos velhos hábitos, dos costumes e pensamentos nocivos que fixaram residência em sua mente e coração. Assim, Mary acaba por representar a encantadora possibilidade de transformação que existe dentro de cada um de nós.

Com tanta magia fluindo, tantas cores surgindo, tantas transformações maravilhosas acontecendo no jardim, não admira – mas ao mesmo tempo surpreende o leitor – que Mary passe a funcionar como uma espécie de conexão entre a vida e o mundo, entre o jardim e a mansão. Desta maneira, é natural que a vida transborde e almeje expandir-se, que a menina queira compartilhar seu segredo, que as plantas e flores possibilitem a transformação de outros personagens. Afinal, quantas vezes não sentimos uma curiosa e bem-vinda mudança de humor ao encontrar-se com pessoas alegres e gentis? Quantas vezes não observamos o dia iluminar-se quando recebemos a luz e energia positiva de alguém carinhoso e de bom coração? A sua própria maneira, é isso que Mary promove. Por modificar-se tão profundamente ela se torna capaz – juntamente com o jardim, os animaizinhos e outros personagens – de possibilitar a transformação do enfezado jardineiro Ben, do hipocondríaco primo Colin e até mesmo do melancólico tio Archibald Craven.

Ainda que as mensagens sobre a construção das mais belas amizades existam ao longo de todo o livro, que as lições acerca da importância do cultivo da empatia permeiem toda a narrativa e, que o discurso sobre o quanto os pensamentos podem nos direcionar tanto para a luz quanto para a escuridão finalizem de maneira encantadora a história, acredito que a beleza de O Jardim Secreto reside no fato de que todas estas mensagens permanecem diretamente relacionadas ao fato de que, somente quando permitimos que as transformações sejam efetivadas em nossa essência, podemos apoiar e auxiliar outras pessoas ao longo de suas próprias jornadas. Nós aprendemos juntos, crescemos juntos e, como o livro tão belamente demonstra, servimos como um meio de condução para a luz tanto quanto para as trevas.

Publicado há 109 anos, O Jardim Secreto encantou e segue encantando uma infinidade de leitores. Suas mensagens instigam nossas mentes, seus personagens sensibilizam nossos corações, sua história supera as barreiras do tempo e espaço. Conduzindo um pequeno fio dourado entre Frances Hodgson Burnett, exemplares impressos em diversos pontos geográficos e leitores de todas as idades, aparências e culturas, O Jardim Secreto nos lembra que podemos mudar, que podemos florescer novamente, que podemos superar desafios e acompanhar outras pessoas em suas jornadas. É por cada um deste motivos que o livro se transformou em verdadeiro clássico da literatura. É por cada um destes motivos que seguimos readaptando sua história para o cinema. Afinal, não podemos nos esquecer que, em meio a tantas sombras, tristezas e perdas, ainda podemos encontrar a luz!

  • The Secret Garden
  • Autor: Frances Hodgson Burnett
  • Tradução: Liliana Negrello e Christian Scwartz
  • Ano: 2020
  • Editora: Zahar
  • Páginas: 351
  • Amazon

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