Em um Japão no início do seu processo de ocidentalização e modernização, temos um jovem professor de matemática oriundo de Tóquio que se muda para a inóspita ilha de Shikoku, a fim de lecionar para sua primeira turma de alunos ginasiais. Ríspido, impaciente e sempre faminto, o protagonista carece de habilidade social e logo passa a ser alvo de maldade e implicância dos colegas e alunos, especialmente por seu sotaque “da cidade grande”.

Na medida que a história flui, veremos lealdade e falsidade se mesclando em um ambiente em que a força e a inteligência são frutos bem pensados e medidos por seus personagens ao passo que as cores e valores do Japão dos samurais desponta através das portas corrediças de arroz. Botchan foi o segundo livro publicado de Natsume Soseki, em 1906, e nele vemos algumas características autobiográficas, visto que o próprio autor também enfrentou hostilidades ao lecionar.

O livro me foi enviado em maio pelo clube de assinatura de livros Pacote de Textos e eu o li em praticamente um dia. Ultimamente, venho me interessando pela literatura japonesa devido a tamanha importância que a leitura, os professores e a educação representam para aquele povo e sua cultura. E devo dizer que são obras muito bem construídas e que deveriam ser mais bem difundidas desse lado do globo.

A escrita do autor é plenamente acessível – embora alguns lugares, nomes e dinastias requeiram uma rápida pesquisa no Google, que sequer prejudicam a leitura – e logo no começo da obra temos a impressão que a voz do narrador salta das páginas ao passo que vai contando suas memórias e algumas traquinagens de criança.

O leitor será apresentado a um professor de 23 anos que, recém-saído da cidade grande, passa a residir e lecionar nos confins do interior do Japão, e com visões de mundo diferentes – o choque entre o ser cosmopolita e interiorano – logo os problemas se seguem, mas de uma forma sarcástica e até divertida. Nota-se, claramente, que Botchan – apelido dado na infância por sua governanta Kiyo – é um rapaz mimado e egocêntrico que sempre procurou ou encontrou confusão onde quer que fosse. Desde sua tenra infância, menosprezado pelo pai e irmão após a morte de sua mãe, a única que lhe dava carinho e atenção era a própria governanta que o venerava. Após a morte do pai, seu irmão vende a casa da família e reparte o montante para os dois, incentivando Botchan a investir em algo que o atraia ou seguir com os estudos.

Se for para mentir para escapar de um castigo, não se deve desde o início traquinar. Afinal, aprontar e ser punido são dois lados da mesma moeda. É por haver punição que se pode praticar boas estripulias.

Aprendiz de adulto, com seu primeiro emprego, impaciente e cheio de si, o jovem professor passa a lecionar e desde já notamos o quão superior ele se considera visto que passa a apelidar o corpo docente da escola ginasial: porco espinho, camisa vermelha, texugo, fanfarrão, abóbora verde, são alguns dos nomes que nosso anti-herói usa para se referir, mentalmente, a seus colegas. Os problemas começam quando os alunos veem na pessoa do professor, com sotaque e dialeto levemente diferente deles, uma oportunidade para traquinagens sem fim.

Interessante constatar que, apesar de seu temperamento explosivo, o professor novato logo dá a volta por cima e “doma” os alunos, mas não sem antes sofrer imenso preconceito por seu modo de falar, vestir e até onde comer e relaxar. Algo que era constantemente criticado por seus colegas de profissão, especialmente o apelidado Texugo, era o prazer material que nosso narrador possuía ao comer, especialmente bolinhos de arroz, mas não parava por aí porque o próprio adorava se banhar e receber massagens em casas de reputação consideradas duvidosas. Tudo isso era tido como uma conduta que não deveria ser adotada por um professor, sendo o apropriado ler e escrever poemas ou ir pescar.


O sarcasmo, humor e a ironia trazidas pelo autor ajudaram e muito na leitura ao passo que comecei o livro em uma manhã e na mesma madrugada finalizei-o. As risadas que soltei com as peripécias do Botchan com O Porco Espinho – especialmente quando eles ficam de tocaia em um hotel observando, através de um buraco feito na porta de arroz, um de seus “valentões” visitar uma casa frequentada por gueixas – e a primeira grande peça pregada pelos alunos – o ataque dos gafanhotos na cama – como também os momentos de reflexão, sobre quais atitudes devemos e não devemos tomar em ocasiões amargas, foram ímpares. Você não terá dificuldade aqui, caro leitor, o enredo flui como uma katana cortando o ar, rápido e indolor, ou como uma flor de cerejeira caindo no chão, leve e única.

O espírito do ensino não está somente na transmissão do conhecimento acadêmico, mas também no incentivo aos valores de nobreza, sinceridade e cavalheirismo, ao mesmo tempo que se extirpam vícios como a vulgaridade, a imprudência e a grosseria.

Poucos livros me fazem “colar na poltrona”, mas esse foi um deles. Natsume Soseki traz uma obra que mescla um Japão moderno e tradicional, os ambientes e costumes daquele povo são muito bem posicionados e de fácil entendimento para o leitor. Não é à toa que ele foi um grande renovador da literatura japonesa, sabendo assimilar a inevitável influência que o Japão passava a sofrer do Ocidente, oportunizando-a em sua produção literária ao pôr em perspectiva os valores nipônicos mais tradicionais.

Por ser um livro/autor que nunca tinha ouvido falar, não possuía expectativas altas nessa leitura, mas ao finalizar a obra fiquei sedenta por mais literatura asiática e por mais Natsume Soseki que possui um olhar sagaz, divertido e bastante satírico das diferenças que constituem uma sociedade. Vemos a figura de um rapaz que, apesar de ter sido menosprezado durante a infância, é essencialmente mimado e se tem em alta conta, mas que vai descobrindo ou redescobrindo o modo e meio de se dirigir e portar em uma sociedade sendo ela localizada em uma província ou na cidade grande. Pude extrair também da leitura um leve pincelar das tradições nipônicas, que até hoje guardam bastante respeito pela era dos samurais, sendo a sinceridade e palavra de um homem a chave e pilar central para o melhor engrandecimento pessoal.

Quanto à outras obras asiáticas que possuem muitas semelhanças à esta, temos A Montanha e o Rio de Da Chen – um romance histórico que conta sobre adversidades e ambienta muito bem a China no final do século XX – e Em Louvor da Sombra de Junichiro Tanizaki – aqui um ensaio sobre a estética japonesa aos poucos “invadida” pela modernização proveniente do ocidente. Ambos eu já li em minhas andanças literárias e recomendo bastante.

CURIOSIDADES:

Natsume Soseki nasceu em Tóquio, em 1867. Infância difícil, órfão de mãe na adolescência, rejeitado pelo pai… Seu caminho se fez através do ingresso na Universidade Imperial (hoje Universidade de Tóquio), para cursar literatura inglesa. Lecionou inglês na Escola Especializada de Tóquio (hoje Universidade de Waseda). Crises nervosas o fizeram abandonar Tóquio e o prestigioso cargo que possuía. Estabeleceu-se em Ehime (Shikoku), onde lecionou numa escola secundária. Em 1900, viajou à Inglaterra como bolsista do Ministério da Educação para estudar literatura e ensino da língua inglesa. Sem se adaptar à cultura ocidental, entrou em depressão e regressou ao Japão em 1903, retomando o magistério.

Em 1905 lançou seu primeiro livro, Eu sou um gato, saudado por crítica e público. Dois anos depois, passou a se dedicar exclusivamente à literatura, tornando-se escritor exclusivo do diário Asahi Shimbun. Seu Botchan foi, muitas vezes, comparado ao Holden Caulfield em O Apanhador no Campo de Centeio de J.D. Salinger e essa é uma indicação que eu irei atender, faça você também e se dê a oportunidade de conhecer os clássicos que modificaram nossa literatura mundial. Faleceu em 1916, por sequelas de suas frequentes crises de úlcera. Soseki é um dos autores nipônicos mais famosos e lidos do último século, um indicativo de sua importância é o fato de que, durante vinte anos, seu rosto estampou a cédula de mil ienes.

  • Botchan
  • Autor: Natsume Soseki
  • Tradução: Jefferson José Teixeira
  • Ano: 2016
  • Editora: Estação Liberdade
  • Páginas: 184
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