Ao contrário de uma porção considerável de leitores apaixonados, não sou familiarizada com os direcionamentos de narrativa e peculiaridades do universo Batman para o mundo maravilhoso das histórias em quadrinhos. Nos momentos em que me perguntam o que descobri ao longo de anos e anos acompanhando de longe a trajetória do universo, acabo ressaltando as conversas com pessoas queridas e as informações obtidas por meio de quem reconhece os mínimos detalhes e enredos dos quadrinhos. Embora pouco compreenda o material original, o terreno fértil que inspirou tantas adaptações bem sucedidas, gosto de pensar que as habilidades de análise que adquiri ao longo de anos estudando construção de narrativa, além de todas as aulas que participei sobre cinema e histórias em quadrinhos (serei eternamente grata ao mestrado por isso), possibilitaram que, após conferir um dos melhores filmes do ano, após refletir sobre sua profundidade, realidade e complexidade, me tornasse capaz de redigir cada palavra emocionada, angustiada e reflexiva sobre Coringa.

Uma verdadeira lição sobre construção e delineamento de personagem, bem como uma prova magnifica de que a ficção pode comentar, escancarar e criticar a realidade, a adaptação escrita e dirigida por Todd Phillips deixa claro em cada nuance, interligação e detalhe técnico que pretende ir além do debate acerca da saúde mental. Por meio da construção e aprofundamento da trajetória de vida, personalidade, desafios e estado psicológico de Arthur Fleck, o filme garante o estabelecimento de uma conexão entre espectador e personagem, possibilitando, assim, a observação de elementos do palhaço pobre que luta para sobreviver em uma Gotham desoladora, insana e sombria, na mesma medida em que, sutilmente ou escancaradamente, denuncia a realidade crua e injusta em que vivemos.

Enquanto gira uma placa na calçada e é ignorado por caminhantes sem rosto, tão invisíveis quanto o próprio personagem principal, recebemos indícios de que a economia de Gotham assola as classes que mais necessitam de chances, de segurança e proteção. Quando Arthur Fleck se prepara para outro dia de trabalho, ouvimos os desafios enfrentados, ou alegremente ignorados pelos governantes da cidade, descobrimos que o lixo (metafórico ou presente no plano físico) transborda por todos os lados. Ao subir uma escadaria no fim da tarde, com a postura curvada e rosto sério; ao se ver vítima da violência gratuita e irracional tão característica de nosso contexto atual; ao ser ignorado pela própria psiquiatra, quem deveria garantir uma ponte de segurança e possibilidade de melhora para um homem quebrado, percebemos e entramos de corpo e alma no mundo de Arthur. É graças aos desafios enfrentados, à violência sofrida, aos comentários maldosos, a todas as vezes em que foi ignorado por colegas, profissionais, parentes, vizinhos e pessoas tão invisíveis quanto ele, que estabeleceremos a mais preciosa conexão com o personagem. Porém, ao contrário do que possam ressaltar os textos superficiais, esta conexão esconde detalhes de um contexto amplo que, interligado às mais variadas características, ações e consequências, eleva o debate e nível do filme.

O ritmo de aproximadamente três quartos do filme é lento. Livre de explosões, lutas, perseguições e tiroteios, Coringa faz uso do tempo necessário para, como destaquei anteriormente, construir e se aprofundar nos mais diversos aspectos, características e desafios enfrentados pelo personagem. Desta forma permite-se ao espectador compreender sua personalidade, mas, com a chegada dos preciosos e angustiantes últimos 30 minutos de filme, entender de maneira dolorosa, chocante e violenta as consequências de tudo, absolutamente tudo o que foi construído e delineado ao longo dos 90 minutos anteriores.

Caso as cenas de perseguição e violência gratuita fossem cortadas nunca sentiríamos “na pele” a dor sofrida por Arthur Fleck, da mesma forma como nunca seríamos capazes de perceber a falta de direcionamento, perspectiva e decência dos mais diversos membros da sociedade. Caso as cenas de cuidado e carinho demonstrados para com sua mãe fossem eliminadas, nunca notaríamos as sombras que se escondiam por trás do olhar materno, os abusos não teriam a mesma força, o abandono não faria tanto sentido. Caso sua relação com os colegas de trabalho fosse baseada no respeito, não notaríamos as similaridades com ações reais, de indivíduos reais que abusam de seus semelhantes com o intuito de elevar seus egos destroçados. Caso a terapia fosse realizada com cuidado, atenção e comprometimento, não veríamos um personagem ressaltando a todo momento que sua psiquiatra “não o escuta” e, desta maneira, acreditaríamos que algo de bom ainda poderia surgir dali.

O filme necessita do empilhamento de situações. Ele verdadeiramente anseia por lhe demonstrar a ignorância de alguns, o descaso de outros, as diversas vezes em que um indivíduo pode ser deixado de lado, pode sofrer as mais variadas violências, pode ser quebrado, abandonado, tratado como lixo ou palhaço. Se ignorasse cada cena, tonalidade, música, atuação ou efeito que o compõem, todo e cada um dos últimos trinta minutos finais perderiam o sentido.

Se qualquer dor, lágrima, estranheza, descaso, risada, característica evidente ou detalhe sutil fosse retirado, esta narrativa tratar-se-ia apenas de mais uma tentativa frustrada de justificar e, possivelmente, inventar desculpas para atos humanos confusos, dolorosos e cruéis. Contudo, uma vez que interliga e demonstra o sentido por trás de cada cena, Coringa permite ao espectador a entrada em um mundo muitíssimo próximo ao seu, abrindo caminho para as críticas sociais e reflexões que muitos ainda não foram capazes de enxergar ou, e é isso o que mais me assusta, ressalta todos aqueles que tiveram a audácia de ignorar as mensagens edificadas ao longo do filme.

Poderíamos, então, dizer que um dos principais objetivos da narrativa não encontra-se na justificação, mas no delineamento de nuances, no escancaramento da complexidade humana, social, real que invade nosso mundo. Quantas vezes não observamos indivíduos ricos agindo como os donos do mundo? Quantas vezes não nos deparamos com governos falhos e corruptos? Quantas vezes não ouvimos casos de homens de boa família e educação agindo agressivamente perante mulheres, crianças e outros homens? Quantas vezes não descobrimos casos de empregados, familiares, esposas ou amigos coniventes com as ações daqueles que se encontram em posição de poder? E, principalmente, quantas vezes não sofremos com casos de indivíduos que, após sofrer os mais diversos e inimagináveis abusos, simplesmente explodiram? Se não existe realidade em cada uma destas perguntas … confesso não reconhecer o mundo em que outros espectadores vivem!

Por outro lado, os atos violentos, a crueldade, caos e irracionalidade expressam a culpa inegável de quem comete tais atos. É por este motivo que defendo ardorosamente que Coringa não utiliza estrategias para justificar os atos de seu personagem principal, da mesma maneira com que não encontra desculpas para qualquer um dos atos cometidos por todos os personagens secundários desta história. O choque final é proposital e não pretende te fazer escolher lados, permanecer a favor de vilões ou mocinhos. Isso pelo simples fato de que aqui não existem vilões ou mocinhos.

De maneira realista, complexa e assustadora, Coringa faz uso de personagens queridos, enredos famosos e insinuações peculiares, conhecidas pelos amantes do universo Batman, da mesma maneira com que se aproveita de características humanas, embasadas em anos de história, dados e informações coletadas por pesquisadores e jornalistas.

É verdade que a adaptação explora profunda e delicadamente os mais diversos aspectos das doenças mentais. Mas, uma vez mais defendo, também estende o debate para além da terapia, da necessidade de buscar auxílio, dos medicamentos, dos sintomas, dores e desafios. Ao demonstrar um governo que corta descaradamente as verbas para a saúde, eliminando de suas pautas o acesso a medicamentos, terapia, segurança, bem como as mais importantes e clamadas necessidades da população, o filme revela aos olhares desatentos que este governo também carrega a culpa de tudo o que acontece a seguir. Ao destacar profissionais incapazes, descontentes, distantes o suficiente para não dispensar qualquer esforço por seus pacientes, o filme demonstra a parcela de culpa dos mesmos. Ao delinear indivíduos de olhar frio e tratamento agressivo, pessoas que preferem fechar os olhos, comunidades que não se importam com vizinhos, crianças, pobres sofrendo todo tipo de violência, ao deixar claro que não notaríamos um Arthur Fleck caído no chão, ao escancarar como tratamos mal e violentamente uns aos outros, o filme espelha nossa própria culpa, seja ela direta ou indireta, no que virá a seguir.

Por meio de uma narrativa complexa, dura, cruel e violenta o longa trabalha a questão das vítimas da sociedade. Ele nos clama por empatia, nos força a olhar para o que ousamos ignorar, nos obriga a exercitar a compaixão, coloca em cheque os velhos preceitos, os comentários ridículos, o preto no branco. Coringa joga pela janela os mocinhos e vilões. Demonstra atos condenáveis sendo cometidos pelo outro lado e, em momento algum justifica ou escolhe desculpas para estes atos, mas, de maneira memorável, possibilita que o espectador reflita e, caso possua as habilidades ou auxílio necessário, leia as nuances e inter-relações existentes entre este filme e a sociedade atual.

Todd Phillips constrói cada cena, determina cada atmosfera, seleciona cada efeito ou trilha sonora, delimita figurino e maquiagem e, direciona seu enredo de maneira a permitir que tudo se encaixe. Nada neste filme é por acaso. Tudo aquilo que é visto, sentido ou ouvido lhe oferece informações para ler, guardar, refletir e relembrar. Faz parte da experiência conectar-se com o personagem, sentir na pele seus anseios, dores, sofrimento e tristeza, mas também faz parte de nosso papel enquanto espectadores compreender que aqui não observamos uma simples e inofensiva ficção.

Coringa, por fim, trata-se de um debate sobre a complexidade das temáticas interligadas a saúde mental. Comporta-se como uma adaptação realista e sombria de um dos universos mais famosos e amados do mundo das histórias em quadrinhos. Fundamenta uma dura crítica perante sociedade, mas, da mesma maneira, demonstra suas nuances e interligações. Porém, talvez no fim seu maior anseio seja destacar o quanto nos afastamos da empatia, compaixão e decência, demonstrando com suas cenas o que não conseguimos enxergar e um caminho para que possamos nos tornar um pouco mais humanos.

  • Joker
  • Lançamento: 2019
  • Com: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz
  • Gênero: Drama
  • Direção: Todd Phillips

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