Os eventos, atrocidades, decisões e consequências provenientes do período da Segunda Guerra Mundial destacam-se por delimitarem uma fonte incansável e complexa para a elaboração de pesquisas, estudos, documentários e obras literárias de ficção e não ficção. Fortemente debatida no âmbito das narrativas históricas, sendo estas apresentadas nos moldes de filmes, seriados, jogos ou livros, a Segunda Guerra é tema conhecido do grande público, tendo possibilitado a produção e compartilhamento de enredos cujos direcionamentos seguem por entre os mais variados aspectos e características.

A relevância e popularidade do conflito no meio literário é inegável, contudo, talvez somente leitores apaixonados por conhecer as interligações entre contexto histórico e produção literária reconheçam no período grande fonte de inspiração para o delineamento de histórias voltadas aos gêneros da ficção científica e distopia. É neste contexto que nasce Um Cântico para Leibowitz, obra publicada em 1959 por Walter Miller Jr. Combatente no período da Segunda Guerra Mundial, Miller participou de aproximadamente 56 bombardeios aéreos, responsabilizando-se, direta ou indiretamente, da destruição de diversas localidades, dentre elas a famosa abadia beneditina de Monte Cassino, o mais antigo monastério da história humana ocidental.

O mundo está numa condição habitual de crise desde o princípio, mas no último meio século, num nível quase intolerável. E por quê, pelo amor de Deus? Qual é o elemento irritante fundamental, a essência de tanta tensão? Filosofias políticas? A economia? Pressão populacional? Disparidades de cultura e credo? Pergunte a uma dúzia de especialistas e obterá uma dúzia de respostas.

Embora caracterize-se como verdadeira obra de ficção, dissociada de cunho autobiográfico, é difícil negar que o contexto histórico do pós-guerra – as explosões e ameaças nucleares, a crueldade humana, as ações de poderosos governos e todas as discussões que surgiram ao longo dos anos 1960 – bem como os bombardeios dos quais participou e a posterior conversão ao cristianismo, desempenharam relevante papel na determinação de alguns dos principais elementos da narrativa construída por Walter Miller Jr.

Um Cântico para Leibowitz, portanto, é fruto de sua época, das vivências de seu autor e, principalmente, do espectro da bomba e pesquisas nucleares que assombraram toda uma geração.

O livro não pretende introduzir ao leitor um personagem principal, um protagonista cujos atos heroicos ou duvidosos nos possibilitam refletir sobre as inter-relações existentes entre mundo de ontem e hoje. Porém, utiliza uma das estratégias que sempre encantam e surpreendem a leitora que vos fala, isso por fundamentar-se no acompanhamento de uma trajetória humana futura, fortemente inspirada nos indícios e caminhos do momento gerador da história que se apresenta ao leitor.

Divido em três partes, relacionadas a três períodos específicos da história humana pós-guerra nuclear, a narrativa ousa imaginar os caminhos trilhados pelos resquícios de humanidade que, praticamente exterminada por seus antepassados, recebe uma segunda chance em um planeta desolado. A única constante em toda a narrativa, o que poderíamos considerar como o verdadeiro e único protagonista, é a Ordem Albertina de São Leibowitz e sua abadia localizada em meio ao deserto sufocante e ardiloso do que, anos e anos no passado, compreendia-se como Estados Unidos da América. Cercados por desolação e tribos que ainda refletem os dias de selvageria, morte, revolta e falta de criticidade provenientes dos anos que sucederam o Dilúvio de Fogo, os monges responsabilizam-se pela proteção, descoberta e manutenção de todo e qualquer conhecimento humano.

Para além de suas atividades religiosas, de seus ritos e peregrinações, estes monges restauram, guardam e salvam documentos e livros provenientes do período em que homens, fascinados por ciência e tecnologia, deixaram de refletir afim de acreditar que estas esferas seriam responsáveis por salvar a humanidade de todo e qualquer desafio e, sem perceber, acabaram por adquirir o conhecimento necessário para sua própria extinção. Ao enfrentarem ondas de selvagens que viam nos resquícios do passado nada além de perdição; ao descobrirem, copiarem e guardarem documentos que nem mesmo são capazes de ler; ao servirem como conselheiros, observadores e vozes de sabedoria por entre acontecimentos caóticos de um novo mundo em construção, estes monges demonstram ao leitor o passado, o contexto gerador deste mundo e as consequências para a humanidade que sobreviveu.

Entretanto, muito mais do que permitir a compreensão do leitor perante um passado fictício fortemente inspirado nos temores reais de toda uma comunidade, estes monges, bem como sua abadia, possibilitam o estabelecimento de conexões entre a humanidade real e a fictícia, direcionando nossas mentes por entre críticas e reflexões acerca de jogos políticos, expansão do império humano, abuso de poder, crenças religiosas, além da característica de aprender pouquíssimo com os erros do passado e alertas do presente.

Belamente escrito e construído, Um Cântico para Leibowitz encanta pela profundidade de suas percepções da realidade e imaginação de cenários futuros. Sua escrita equilibrada, reflexiva e detalhista permite a compreensão dos mais diversos elementos que fundamentam este mundo desolado. Da mesma forma, as diversas camadas sobrepostas quando da construção e direcionamento da narrativa oportunizam o surgimento de diversas interpretações, gerando, ainda, níveis de compreensão variados conforme a atenção, experiência e conhecimento de mundo do leitor.

Apesar de classificado, por muitos, como um romance pós-apocalítico, ouso enquadrar a obra nos gêneros da ficção científica e distopia, uma vez que aqui acompanhamos com riqueza de detalhes o contexto e consequências que levaram a construção de um mundo essencialmente caótico, desolado e injusto. Mundo este que não funciona e cujos caminhos direcionam somente a novos cenários negativos – afinal, distopias não se caracterizam apenas pela separação da sociedade em grupos específicos. Ao observar o panorama da Segunda Guerra Mundial, os conhecimentos científicos e tecnológicos que possibilitaram a criação da bomba atômica e todas as decisões e atitudes interligadas aos eventos mais perturbadores e marcantes do século XX, Walter Miller demonstra que a ciência não precisa pesar a atmosfera e compreensão do leitor, mas sim aproximá-lo de percepções que, em infinitos casos, nunca aconteceriam.

Apesar de não se tratar de um autor popular, pertencente ao hall de nomes famosos e fortemente comentados no contexto da produção literária de ficção científica e distopia, Walter Miller Jr. prova seu valor literário em Um Cântico para Leibowitz. A única obra do autor publicada no Brasil demonstra a essência da distopia de maneira impecável, além de comprovar ser possível inserir pensamentos, conceitos e conhecimentos científicos sem dificultar a leitura, voltando-se muito mais para a construção de uma verdadeira consciência crítica por parte do leitor, do que a apresentação de uma palestra sobre os fundamentos da bomba atômica.

Profundo, repleto de camadas, críticas e interpretações, o livro trabalha maravilhosamente bem com o conceito de futurologia comparativa, imaginando um mundo tenebroso com base nas escolhas da realidade humana. É encantador acompanhar suas palavras, porém, ressalto que a experiência de leitura somente terá significativo valor no momento em que o leitor se deixar tocar pelos eventos desta ficção e refletir sobre tudo o que leu, pois, para além de explosões, batalhas espaciais e adolescentes lutando pela sobrevivência, a ficção científica e a distopia importam-se com a construção da criticidade do leitor e isso Um Cântico para Leibowitz faz maravilhosamente, profundamente e encantadoramente bem!

  • A Canticle for Leibowitz
  • Autor: Walter M. Miller Jr.
  • Tradução: Maria Silvia Mourão Netto
  • Ano: 2014
  • Editora: Aleph
  • Páginas: 399
  • Amazon

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