Entre os anos de 1992 e 1993, Kim Stanley Robinson publicou o primeiro volume de uma trilogia que iria integrá-lo para sempre entre os melhores autores de ficção científica do século XX. Red Mars, traduzido livremente como Marte Vermelha, primeiro volume da Trilogia de Marte, apresenta uma narrativa complexa, densa, profundamente fundamentada em conhecimentos e princípios científicos para que todos os eventos e consequências observados ao longo do enredo possuam embasamento. Um exemplo perfeito de ficção científica “hard”, como alguns chamariam. Red Mars não tem medo de apresentar ao leitor os conceitos, teorias, saberes e princípios científicos que dão base para a construção de toda a história. Em meio a seus mistérios, desaparecimentos, assassinatos, rebeliões e acontecimentos políticos, o livro insere o que se sabia sobre Marte, o espaço e tantos outros elementos no final do século XX e, talvez por interligar de forma tão interessante estas duas características à diversos comentários e críticas sociais, livro e autor tenham conquistado a posição elevada que conquistaram.

Apesar do sucesso conquistado, da inegável qualidade literária de Red Mars e de tratar-se de um autor de ficção científica renomado que muitos leitores apaixonados pelo gênero deveriam conhecer, Kim Stanley Robinson nunca teve qualquer obra traduzida e publicada no Brasil. O cenário silencioso e a falta de clássicas ficções científicas no mercado editorial brasileiro sofrem grandes mudanças quando, ao longo de 2017, 2018 e 2019 – se minha análise breve e pouco aprofundada estiver correta – diversas editoras passam a recuperar e publicar obras nunca antes vistas em território nacional. E é neste ponto que entra a Editora Planeta e Nova York 2140, primeiro livro escrito por Kim Stanley Robinson publicado no Brasil!

Nova York 2140 é muito parecido e muito diferente de seu primo Red Mars. Assim como o livro de maior destaque do autor, aqui encontramos uma leitura densa, complexa e de ritmo lento. A obra exige muito do leitor e desde já considero importante destacar que, para aqueles leitores pouco acostumados a acompanhar debates científicos, a ler obras teóricas ou até mesmo a conferir ficções científicas com cunho muito mais científico do que fictício, este livro será um verdadeiro desafio. Embora apresente um mundo interessante, um contexto ficcional curioso e diversos personagens para nos irritar, apaixonar, encantar e divertir, as páginas deste livro contém todo tipo de conhecimento científico, econômico, social e histórico recolhidos pelo autor para que, após serem interligados e analisados, fossem capazes de oferecer as bases para construção desta obra. É por esse motivo que em diversos momentos teremos explicações acerca do clima, da geologia, dos princípios econômicos, do capitalismo, do meio ambiente e de tantos outros assuntos que, caso não fossem apresentados ao leitor, este nunca seria capaz de entender aquele mundo que, e aqui está a magia do gênero, não se trata apenas de ficção.

Publicaram artigos, gritaram e acenaram os braços, e alguns poucos escritores de ficção científica, sagazes e profundamente pensativos, escreveram relatos lúgubres sobre tal eventualidade, e o resto da civilização continuou queimando o planeta como se fosse a obra-prima de um pirômano. Sério. Isso era o quanto aqueles idiotas se importavam com seus netos, e isso era o quanto eles acreditavam em seus cientistas, embora sempre que sentiam o menor sinal de resfriado corressem até o cientista mais próximo (ou seja, o médico) para buscar ajuda.

Mas, enquanto as explicações e verdadeiras exposições podem desafiar, tornando a leitura mais lenta, detalhada e, vale ressaltar, nem por isso menos interessante e maravilhosa, o enredo se torna confuso, os direcionamentos de narrativa não são verdadeiramente claros e, no contexto da leitora que vos fala, apenas fui capaz de compreender os possíveis objetivos da história quando estava no limite das páginas 200 a 250, o que pode ser um problema para os iniciantes em ficção científica, ou mesmo para aqueles que gostam de saber o que esperar de uma obra antes de iniciar a leitura. É por esse motivo que classifico Nova York 2140 como uma mistura de manifesto e história de ficção.

Aqui encontramos personagens carismáticos, duvidosos e até mesmo alguns que nos encantam instantaneamente enquanto outros nos conquistam aos poucos. Aqui encontramos também alguns mistérios que se estendem por boa parte das 496 páginas, alguns cenários peculiares e interessantes desta Nova Iorque do ano de 2140, alguns romances breves e detalhamento de cena necessário para que possamos visualizar alguns dos elementos principais deste mundo. Porém, mesmo quando acompanhamos personagens específicos, mistérios ou problemas a serem resolvidos, sempre teremos alguma informação, algum conhecimento sendo transmitido e, principalmente, uma espécie de teoria, reflexão ou crítica social que somente se extingue quando a última página do livro é virada. São nesses momentos de exposição de críticas e reflexões que percebemos que, talvez, a narrativa confusa em direcionamento seja proposital, pois assim abre-se espaço para que o autor expresse tudo o que sabe, tudo o que pensa, tudo o que refletiu e tudo o que poderia vir a acontecer, além de coisas que nós, cidadãos deste planeta, poderíamos fazer para mudar o jogo. É por isso que digo que o livro é muito mais um manifesto misturado com história de ficção do que o contrário.

Após todos estes comentários, contextualizações e divagações, você deve estar se perguntando: afinal, qual a história ou sobre o que irá tratar esse tal de Nova York 2140? E, com tudo o que disse até o momento, finalmente posso tentar abordar o enredo ou possíveis direcionamentos desse livro tão complicado de ser apresentado para os leitores. Nova York 2140 delimita como plano de fundo um futuro próximo onde, após diversos avisos acerca da insustentabilidade dos meios de produção humanos e exploração destrutiva da natureza, as consequências finalmente atingiram a humanidade com força. No ponto temporal em que a história se desenrola o nível do mar subiu entre 12 e 15 metros. Graças a este detalhe curioso, perfeitamente esperado quando se ouvia de novo e de novo os princípios do efeito estufa e outros tantos dados e saberes que o autor faz questão de destacar ao longo da narrativa, diversas cidades foram inundadas, diversos países precisaram se reestruturar, as tecnologias precisaram reinventar ou descobrir novos materiais e ideias capazes de possibilitar a sobrevivência da humanidade, os governos seguiram agindo como sempre agiram e os bancos também, mas a população, em toda a sua criatividade e força de vontade, presenteou os acionistas e podres de ricos com ideias interessantíssimas.


É assim que chegamos aos mistérios, história e personagens deste livro. Uma vez que o nível do mar inundou metade do mundo, e metade de Nova Iorque também, descobriremos que na grande maçã alguns edifícios foram recuperados e transformados em grandes torres capazes de suportar a força das marés, o desgaste da água salgada e o peso de mil andares de apartamentos, fazendas e espaços coletivos. Estes novos materiais tornaram possível vedar o subsolo mesmo quando localizado abaixo do nível do mar, além disso, sua leveza e força permitiu que os edifícios crescessem em altura, constituindo verdadeiras comunidades ou cooperativas de moradores que trabalham juntos para conseguir alimento para o edifício, energia sustentável, espaços seguros de convívio, além de um lugar para morar.

A Torre Met é uma destas comunidades ou cooperativas e é por meio dela e de alguns de seus habitantes que seguiremos por entre os direcionamentos confusos e caóticos desta história.

Tudo tem início quando dois moradores da fazenda do edifício desaparecem sem deixar vestígios. Uma das inspetoras da Polícia de Nova Iorque, também residente da Torre Met, se encarrega do caso e suspeita de possíveis relações entre o desaparecimento e a inusitada oferta de compra oferecida à comunidade por uma empresa cuja identidade permanece desconhecida. Deste ponto, seguiremos os passos da inspetora; da dupla desaparecida; de uma famosa personalidade da nuvem, criadora de um reality sobre o meio ambiente; de um acionista impulsivo e um tanto quanto ingênuo; do encarregado pelos reparos e manutenção do edifício; de uma assistente social pertencente ao conselho da Torre Met, além de dois garotos órfãos que aparecem de forma inesperada. Na medida em que avançamos por entre os percursos, desafios e situações vivenciadas por cada personagem, receberemos as peças de um grande quebra-cabeças, bem como informações para nos auxiliar a montar o plano geral desta história, desvendando assim os seus mistérios, compreendendo suas nuances e navegando por entre os limites micro, meso e macro deste mundo complexo e curioso.

E assim, meus queridos leitores do Estante Diagonal, chegamos ao fim deste texto. Em resumo, Nova York 2140 é um livro complexo, denso, de leitura difícil para os pouco acostumados com ficções científicas “hard” ou mesmo com obras teóricas repletas de conceitos e informações. É uma obra cujo aspecto ficcional se mistura aos elementos de nossa realidade, apresentando um contexto que poderia existir dentro dos limites de um futuro próximo. Contudo, é uma história que por vezes parece existir apenas para expressar os dados que fundamentam a possibilidade de existência deste futuro, além das discussões do autor acerca dos mais variados aspectos de nossa sociedade.

Talvez não seja a obra mais indicada para os iniciantes em ficção científica, talvez não seja a leitura mais leve e divertida que você fará em toda a sua vida, mas, para aqueles que gostam de refletir sobre nosso mundo, que amam se aventurar por novos estilos de escrita e, principalmente, para aqueles que conhecem o valor de entrar em contato com novas ideias, discussões e teorias, Nova York 2140 é uma leitura imprescindível, daquelas que pode até mesmo modificar nossa visão de mundo.

  • New York 2140
  • Autor: Kim Stanley Robinson
  • Tradução: Márcia Blasques
  • Ano: 2019
  • Editora: Planeta de Livros
  • Páginas: 496
  • Amazon

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