Kurt Vonnegut, ao longo de minha trajetória enquanto leitora de ficção científica, sempre se apresentou como um curioso mistério literário. Sempre duvidei do carinho que tantos leitores demonstravam por seus livros e histórias, não acreditando que um escritor do gênero pudesse transformar-se em favorito de tantos e seguir com pouquíssimos depoimentos negativos.

Ao mesmo tempo, sempre me vi fascinada pelos comentários que destacavam a pertinência de suas críticas sociais, a acessibilidade de sua escrita, o bom-humor, ironia e sarcasmo constantemente inseridos em suas narrativas. Deste modo, por muitos anos segui acompanhando os comentários da crítica especializada, os anúncios de novas traduções e os lançamentos ou relançamentos de livros escritos pelo autor. Da mesma forma, me preparava e ansiava pelo momento em que, finalmente, teria a oportunidade de conhecer o soldado que tanto tinha para dizer sobre a guerra, a sociedade e o mundo em que vivemos.

Não é o conhecimento que está causando problemas; é o uso que estão fazendo dele.

Hoje, após meu primeiro contato com seu estilo de escrita, após ter finalizado meu primeiro livro, ter grifado parágrafos inteiros, ter sorrido por conta de seu sarcasmo e bom-humor, ter concordado e me surpreendido com suas críticas e reflexões, após ter encontrado outra ficção científica distópica para amar e indicar, confirmo que Kurt Vonnegut é exatamente tudo aquilo que já falaram sobre ele!

Publicado originalmente em 1952, Piano Mecânico ecoa clássicas narrativas de ficção científica distópica, remetendo aos elementos e detalhes de histórias como Metrópolis (1925), na medida em que demonstra contextos e nuances de uma cidade automatizada e fortemente regrada pela lógica das máquinas, ou ainda, seu antecessor Eu Robô (1940 a 1950), conforme descortina as limitações, redução do livre-arbítrio e imposições de algo que poderíamos classificar como uma verdadeira ditadura computadorizada.

Aqui observaremos um mundo comandado e organizado por máquinas, um mundo onde programas de computador são capazes de determinar o valor de qualquer pessoa, direcionando aqueles cujas estatísticas demonstram inutilidade técnica e social para atividades maçantes, repetitivas e livres de propósito. Essas pessoas, denunciadas pelas máquinas como inferiores, segregadas pelos ricos gerentes e engenheiros da cidade de Ilium, distanciadas dos centros de poder e tomada de decisão, devem mostrar gratidão pelo sistema que as excluiu, afinal, o governo das máquinas lhes oferece uma residência mobiliada, um pequeno salário, alimento, aparatos e aparelhos que lavam suas louças ou secam suas roupas. Para fechar o pacote, oferecem ainda uma brilhante televisão para entretenimento de qualidade. Neste sentido, não faria sentido algum desejar pela queda das máquinas, computadores e sistemas especializados … afinal, não foram eles que transformaram o mundo e ofereceram o presente do hoje?

No curioso contexto dos Estados Unidos de Piano Mecânico as pessoas são medidas, tabeladas, classificadas conforme sua inteligência, habilidades, capacidades motoras, físicas, emocionais e intelectuais. Seus dados estão guardados na memória infinita de supercomputadores, suas informações propiciam a elaboração de complexas previsões, direcionando indivíduos para oportunidades de demonstrar seu valor em meio a um país que constantemente cria novas máquinas que extinguem profissões e atividades humanas. Contudo, na moderna e esperançosa cidade de Ilium, do outro lado do rio, atravessando a ponte mais próxima, vivem os gerentes e engenheiros especializados, aqueles que admiram as máquinas, aqueles cujas ideias e criações automatizam a vida, aqueles que observam suas contas bancárias crescendo na medida em que o resto do mundo afunda no tédio, na falta de perspectiva, na passividade e dependência das maravilhosas criações que lhes tiraram qualquer chance de futuro melhor. Neste lado da cidade reside o engenheiro e aspirante a gerente Paul Proteus, nosso protagonista confuso, entediado e em processo de despertar.

É por meio do desalento, descontentamento e desconforto de Paul Proteus – homem branco, heterossexual, proveniente de família rica e privilegiada – com a situação dos mais simples e segregados cidadãos norte-americanos, que Kurt Vonnegut inicia seu processo de crítica, questionamento e reflexão sobre a valorização extrema das máquinas. A história de Paul Proteus é uma história sobre despertar. Trata-se de uma trajetória de observação das nuances do mundo, de análise da dualidade que existe em todo e qualquer sistema que promete apenas conquistas, ouro e maravilhas. Trata-se do caminho desalinhado e desajustado que percorremos a fim de enxergar o mundo e as coisas do mundo com novos olhares, construindo por meio de comparações e conhecimento dos diversos lados de uma mesma moeda, nossa própria consciência crítica.

Por meio de seu bom-humor, de seu sarcasmo e ironia, além de seu estilo de escrita acessível que preza pela contextualização e inserção do leitor no mundo literário que se descortina, Kurt Vonnegut delineia uma narrativa de ficção científica distópica inspirada em tantas outras publicadas antes da sua. Aqui encontramos a clássica figura do personagem descontente e em processo de despertar, observamos suas aventuras e contato com o mundo que existe além da proteção de sua frágil ignorância.

Aqui acompanhamos o nascimento de movimentos dissidentes, conhecemos os mais variados contextos e percebemos como, na grande maioria dos casos, as propagandas e discursos encantadores também podem esconder aspectos sombrios. Aqui, como em tantos outros livros, não encontramos respostas definitivas para o destino daquela confusa sociedade e, ainda assim, vale a pena virar cada página, conferir cada parágrafo pois, à sua própria maneira, Kurt Vonnegut agrega sua voz a de tantos outros, demonstrando a dualidade que existe nas brilhantes e polidas superfícies de cada máquina, computador ou aparelho que criamos.

Piano Mecânico, como ressaltei no início desse texto, ecoa debates, histórias, personagens, detalhes e características narrativas de clássicas obras publicadas antes dele. Ao contrário do que muitos podem pensar ou defender, esse aspecto do livro não se trata de um defeito, de um ponto negativo e, muito menos, de uma crítica de minha parte. Acredito que reconhecer as inspirações de uma obra é valorizar suas peculiaridades na mesma medida em que ressaltamos aquelas que lhe permitiram existir, é demonstrar que nunca criamos sozinhos e que a beleza da criação literária também está na possibilidade de ressignificar as histórias que nos trouxeram até aqui.

Dito isso, Piano Mecânico torna-se único enquanto expressa o estilo de Kurt Vonnegut, delineia seus questionamentos e reflexões, constrói mundos e personagens a partir de mundos e personagens que nasceram antes dele. Sua história nos alerta acerca dos perigos do futuro, nos demonstra suas possibilidades brilhantes, destacando o que tantos estudiosos, filósofos da ciência e escritores de ficção científica já demonstraram: que toda e qualquer criação tecnológica promove tanto consequências negativas quanto aspectos positivos. Cabe a nós colocar na balança as possibilidades e decidir se vale a pena arriscar nossa humanidade por máquinas que determinam nosso valor.

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  • Autor: Kurt Vonnegut
  • Tradução: Daniel Pellizzari
  • Ano: 2020
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 496
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