Socando o Ar | Ibi Zoboi e Yusef Salaam

18 ago, 2021 Por Clara Vieira

Escrever uma resenha sobre Socando o Ar, obra de Ibi Zoboi e Yusef Salaam publicada pela editora Harper Collins Brasil, se mostrou como um desafio para mim por diversas razões. A primeira foi seu formato, já que era a primeira vez que eu lia uma obra que contava uma história no formato de poesia. Outro desafio grande era poder falar de maneira respeitosa sobre uma história que aponta o racismo presente em nossa sociedade atual, admitindo também minha branquitude e minha posição de aprendizado ao fazê-lo. Apesar disso, aceitei esses desafios com muita felicidade, porque seria uma oportunidade de aprender e de sair da zona de conforto na qual a literatura atual facilmente nos enreda. Assim mergulhei na história de Amal Shahid, um adolescente preto de 16 anos julgado e condenado à prisão por um crime que ele não cometera. Acompanhamos ao longo da narrativa o processo de julgamento e aprisionamento de Amal, sua maneira de significar o que lhe acontecia, e a importância da arte para ele. 

Ao ler sobre Amal e sua vida fui sendo levada pelo fluxo narrativo, o que pude reconhecer que era um mérito da estrutura poética deste livro. O que poderia parecer à primeira vista como um formato que talvez dificultasse a leitura teve o efeito oposto em mim. A história foi sendo construída de maneira bastante imagética e afetiva, de modo que me senti envolvida na narrativa. Desta forma, acredito que todos os aspectos formais foram essenciais para compor a história: a ordem dos versos, das palavras, as diversas metáforas e os desenhos que acompanham a narrativa. Justamente por causa da influência da formatação do texto na beleza e profundidade desta história é que eu recomendo que a leitura seja feita no livro físico.

Apenas ao terminar a leitura compreendi também que a poesia me parecia a melhor maneira através da qual essa história poderia ser contada, por nos permitir compreender as injustiças perpetuadas pelo racismo de maneira não apenas intelectualizada, mas também emocional. Muitas vezes corremos o risco de analisar problemas sociais de maneira afastada, como se aquilo não nos dissesse respeito, como se não existissem pessoas de verdade envolvidas nessas situações. As diversas formas de arte se mostram como um contraponto a isto enquanto uma via  de envolvimento intelectual e emocional com a narrativa apresentada.

Audre Lorde aponta isso em um dos textos presentes no livro “Irmã Outsider” intitulado “A poesia não é um luxo”. Nele, a autora preta, feminista e lésbica aponta como faz parte de nossa sociedade patriarcal e racista o favorecimento das ideias, relegando aspectos emocionais a algo inconveniente que deve ser apenas tolerado; em resumo, a poesia tende a ser vista como um luxo. Em contraponto, Lorde nos mostra como os sentimentos são importantes enquanto condutores rumo a um futuro diferente. A poesia, por trazer para a linguagem os afetos que até então não tinham tomado forma, apresenta-se então como uma fusão entre sentimentos e ideias. Quando os afetos que até então eram corpo tornam-se também palavras, pode-se compreendê-los, o que traz consigo a potência de poder criar um futuro diferente.

Esta maneira de enxergar a poesia dialoga profundamente com Socando o Ar justamente porque Amal enxerga a arte – não somente poesia, mas também pinturas e desenhos – como aquilo que traz à tona a nossa verdade. É através da arte que Amal encontra maneiras de expressar tudo aquilo que pesa em seu peito. É desta forma que ele dá sentido à sua história, usando, por exemplo, metáforas sobre as cores do arco-íris para falar sobre racismo, e metáforas sobre caixas visíveis e invisíveis ao redor de nós para falar sobre opressão. A poesia e a pintura se tornam a maneira de Amal não se perder de si mesmo em uma situação na qual inventaram uma outra narrativa para ele, a do assassino perigoso. Retomo aqui a afirmação de Audre Lorde de que a desumanização perpetuada por algumas instituições mata os sentimentos, e o quanto isso é também, de certa maneira, uma forma de matar o potencial de expressão e a criatividade das pessoas. É contra isso que Amal luta constantemente, utilizando-se da arte como uma forma de expressão e resistência em um ambiente de opressão. 

Creio ser importante aqui contextualizar que um dos autores desta obra, Yusef Salaam, foi encarcerado enquanto adolescente, conjuntamente com outros quatro amigos, por um crime que não cometeram. Em 1989, uma mulher branca foi vítima de um ato de violência no Central Park. Um grupo de cinco adolescentes pretos e latinos, dentre os quais Salaam estava incluso, foi condenado por este crime no ano de 1990, apesar de o DNA presente na cena do crime não ser compatível com nenhum deles. Foi ampla a divulgação do caso na mídia, com envolvimento de figuras públicas que pregavam discurso de ódio contra eles. Apenas em 2003 Salaam teve sua sentença revogada, após outro homem, já detido por outros crimes, ter confessado a autoria deste. Atualmente Salaam é palestrante e ativista pelas causas da população preta e pela reforma da Justiça Criminal. 

Apesar de Socando o Ar não ser uma reprodução da história de Salaam, há uma clara inspiração nela, com o protagonista sendo um jovem adolescente preto, artista e encarcerado. Ao contar essa história, no entanto, Ibi Zoboi e Yusef Salaam optaram por não falar apenas sobre crime, injustiça e raça, e sim em focalizar principalmente o poder da arte e a importância da esperança. Por isso os autores batizaram o personagem principal de Amal, que significa esperança em árabe. É devido a esse enfoque na resistência e na esperança que, apesar de esta leitura ter me trazido muita tristeza e indignação devido às injustiças abordadas, ela também foi uma leitura excelente e que recomendo a todos que desejem aprender – intelectual e emocionalmente – sobre esse assunto.

  • Punching the Air
  • Autor: Ibi Zoboi, Yusef Salaam
  • Tradução: Jim Anotsu
  • Ano: 2021
  • Editora: Harper Collins Brasil
  • Páginas: 400
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