Licorice Pizza – Crítica

23 mar, 2022 Por Viviane Papis

Se tem algo que a Academia Americana de Cinema gosta de ver é filme sobre a própria arte, a era de ouro de Hollywood e seus astros; ou nesse caso, aspirantes a astros. Indicado a Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original no Oscar 2022, “Licorice Pizza” estreou no final de 2021 e já coletou comentários e opiniões contrastantes e algumas premiações ao longo dos meses. Nada surpreendente vindo de Paul Thomas Anderson, diretor dos premiados “Sangue Negro” e “Magnólia”. Diferente dos anteriores, em “Licorice Pizza” o cineasta aborda uma história de amadurecimento e relacionamentos de um lugar de enorme frescor e baseado livremente em aventuras reais, com um twist de leveza e simplicidade pouco característico (ou mesmo representativo) de sua genialidade.

Nos arredores da Los Angeles de 1973, o jovem Gary, de meros 15 anos, se ajeita para tirar as fotos do anuário do ensino médio. Enquanto espera na fila, Alana, uma das assistentes, oferece um espelho de mão para os vaidosos alunos que desejam mostrar seu melhor lado para as câmeras. Gary não perde tempo e logo investe seu charme em Alana, que engaja na conversa desse adolescente extremamente confiante querendo saber até onde vai seu papo doce. Gary a convida para uma bebida mais tarde e Alana desdenha seus avanços, afirmando ser muito novo para ela. Alana mais tarde de fato aparece no bar, como se aceitasse o desafio (ou seria o chamado?) de Gary.

Com essa singela apresentação, a história já havia me capturado com enorme curiosidade sobre onde esse encontro levaria personagens tão opostas. E ao longo do filme, qualquer expectativa que criei sobre eles foi completamente contrariada pelos eventos que se seguiram. Gary e Alana se envolvem em diversos projetos de cunho empreendedor do inventivo adolescente, primeiro um negócio de colchões d’água (um símbolo dos anos 70), depois um “point” de pinball, atravessado por bicos do ator mirim que não consegue deslanchar sua carreira. E com cada cena contida em si como uma anedota, o filme como um todo me passou a sensação de diversas crônicas sobre uma juventude Los Angelina.

Desde esse primeiro encontro ficou marcado entre os dois o romance latente, rejeitado primeiro por ela, depois por ele, e ao final… bom, não darei spoilers! O que me atraiu nesse ping pong emocional foram as desventuras que os dois se metem em nome da paixão e do orgulho, para se mostrar e impressionar o outro, deixando os personagens que estão no meio da cena envoltos em uma estranha e calada dinâmica na amizade que surge entre eles.

Das diversas atuações ilustres de artistas consolidados, deixo minha menção a Bradley Cooper, Sean Penn e John Michael Higgins que não coincidentemente representam figuras do mundo do showbiz que maltratam, abusam e negligenciam suas companheiras mulheres, em especial Alana, que se vê sempre envolta por esses homens ultrajantes em comparação ao sensível e autêntico jovem Gary. Justamente por causar esses desconfortos que achei as cenas com esses atores as mais absurdas e hilárias, como ver Sean Penn cruzando de moto um monte de terra em fogo ou Bradley Cooper “ajudando” Alana a passar por uma rua estreita com um caminhão de entregas.

No entanto, o grande destaque fica para os novatos da grande tela, Cooper Hoffman, interpretando Gary e Alana Haim, interpretando Alana. Pessoalmente, meu favorito foi Gary, um personagem que demonstra a vitalidade de uma economia e personalidade estadunidense que está sempre disposta a buscar o próximo negócio do momento. Há uma dualidade forte em Gary entre viver sua adolescência e os dramas que geralmente a acompanha (casais que se aproximam e rompem, o desempenho escolar, as aspirações para a vida adulta) e performar o papel de um adulto seguro de si e de onde quer chegar. Me estranhou muito a ausência do ambiente escolar nesse filme e da interação de Gary com seus pares, ainda sabendo que muitas das cenas retratavam o cotidiano do verão – de férias – de Los Angeles. Acredito ser um indicativo muito forte da personalidade e da busca do adolescente de se apropriar da vida e das oportunidades que ela carrega.

Durante muitas das cenas, senti nessa chama empreendedora de Gary uma tentativa de mostrar-se para além da nada atrativa aparência do bom menino e demonstrar do que é capaz, sempre muito inventivo e engenhoso ao solucionar seus problemas. Além disso, um aspecto muito importante de Gary, algo que pode escapar aos espectadores brasileiros, é ter Valentine (namorado, em inglês) como sobrenome e o personagem ter sido pintado pelo diretor constantemente como um romântico, por Alana e pela vida. Tudo que Gary busca é se reinventar e buscar um caminho que supre a falta das figuras paternas no seu crescimento. Impossível não ser cativada por ele.

Já Alana foi uma personagem que custei a me empatizar. Uma mulher empacada na vida, que exala pouco joie de vivre, que se sente injustiçada em comparação às irmãs e presa à unidade familiar. Uma impactante oposição ao ser comparada a Gary Valentine e sua juventude sufocante. Claramente lhe falta o impulso de crescer e onde ser no mundo antes de encontrar Gary. E pouco nos cabe o julgamento de decidir passar seu tempo com um adolescente e seus empreendimento criativos e, convenhamos, pouco lucrativos. Talvez seja difícil ver refletido na tela uma figura tão familiar aos diversos millennials que conheço e enfrentam dilemas semelhantes a Alana.

Tento então levar em consideração que o retrato de Alana seja infeliz e injusto com sua subjetividade, pois a vemos apenas depreciada, ignorada, usada como um objeto pelos homens aos seu redor, cansada de exercer um papel feminino muito delimitado na sociedade (ou mesmo na sua comunidade judaica) e sem saber como se reinventar. É claro que Gary parece ser sua salvação, e ainda que contrariada aos avanços do garoto, sempre se volta a ele e consegue estabelecer algum grau de amizade, pois é o único que a aceita e trata como pessoa própria e com méritos. É com essa amizade/paixão que Alana pôde encontrar-se no mundo e sentir desejo de buscar algo mais para si, muitas vezes quebrar a cara nas situações que encontrou e, mesmo dura e hostil a Gary, sempre encontrar nele alguém de confiança e afeto.

Descrever esse filme como uma história de amor é desmerecer sua complexidade e diminuir personagens tão intrigantes e reais, ainda que retratadas por uma lente cínica. De certo modo, é uma história de encontros e desencontros envoltos de nostalgia e trilha sonora magnífica que me envolveu nesse universo Los Angelino quente e frenético. Há uma leveza na narrativa estampado pela arte retrô e vestimentas despojadas dos personagens, compondo uma imagem que nos leva através do túnel do tempo ao cotidiano inventivo dos dois. Somos então testemunhas e confidentes ao mesmo tempo torcendo por e reprovando as decisões que cada personagem toma nesses (des)encontros.

Não posso deixar de mencionar a grande diferença de idade entre os personagens (ele 15 e ela 25 e tantos) ou mesmo a relação beirando tóxica que na metade do filme havia se estabelecido entre eles. A despeito disso, Paul Thomas Anderson não desresponsabiliza nada nem ninguém ao mostrar os elementos formativos de suas personagens. Há um retrato muito realista desses jovens que buscam enxergar algo melhor para si em um período histórico repleto de transformações como a revolução cultural, a guerra no Vietnã, crise da gasolina, ou a passagem para a nova era de Hollywood. É extremamente cativante acompanhar essas jornadas de um verão (ou vários verões) que surgiu de uma cena completamente improvável e cômica.

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O cinema de Anderson não é muito conhecido por um olhar cômico e irônico sobre sua narrativa (ainda que sempre crítico e áspero), mas a dinâmica de relação entre duas figuras opostas que são incapazes de se afastar está aqui em seu primor. Um filme leve e gostoso, uma captura de uma época gloriosa que já se foi e que com certeza deixa saudade no cineasta. Uma experiência cinematográfica muito prazerosa e contida em si, mas que não deixa tantas marcas no espectador ao sair das salas de cinema.

  • Licorice Pizza
  • Lançamento: 2021
  • Com: Alana Haim, Cooper Hoffman, Bradley Cooper
  • Gênero: Comédia, Drama, Romance
  • Direção: Paul Thomas Anderson

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