Uma espécie de mistura harmônica entre livro de memórias e livro de crônicas, foi o que encontrei em meu primeiro contato com a escrita curiosamente bem-humorada, profundamente leve e cuidadosamente reflexiva de Haruki Murakami. E assim, te surpreendo ao afirmar que sim, ao longo de todos esses anos produzindo conteúdo literário na internet, passei ilesa pela obra de Haruki Murakami.

“Em certo sentido, a morte de um sonho é mais triste do que a morte de algo vivo. Às vezes, isso pode parecer muito injusto.”

O premiado escritor japonês, um dos principais nomes da literatura japonesa contemporânea, me era conhecido de nome e títulos curiosos. Porém, equivocadamente imaginava tratar-se de uma espécie de expoente de um experimentalismo simbolista recheado de inspirações existenciais… claramente equivocada estava essa leitora apaixonada pela diversidade que vibra nas páginas dos livros que, felizmente, hoje conseguimos acessar. É possível que encontremos diversos exemplos e detalhes experimentais, simbolistas e existenciais na obra de Murakami, mas em Primeira Pessoa do Singular as coisas são muito mais simples, sinceras e cotidianas.

Nos oito textos que constituem as 168 páginas deste livro, retornaremos ao passado e acompanharemos detalhes e memórias ligadas ao caso de uma única noite do suposto misterioso narrador… caso não nos seja possível afirmar ser Haruki quem viveu tais aventuras noturnas.

Conheceremos a relação do escritor com os clássicos do Jazz ou a famosa banda inglesa The Beatles, e as maneiras como elementos facilmente identificáveis por leitores de todo mundo, adquirem contornos pessoais devido as experiências e relatos que somente Murakami poderia descrever, pois são lembranças guardadas durante anos em sua memória. E assim, por entre os altos e baixos do time de beisebol Yakult Swallows ou peculiaridades de um senhorzinho japonês que sai de terno em períodos específicos de sua vida para ler e beber consigo mesmo, percebemos que nossos escritores preferidos não passam de pessoas como nós, com seus cotidianos curiosos, suas memórias adoráveis e ensinamentos preciosos delimitados pelas páginas impressas de um livro!

Primeira Pessoa do Singular é a expressão da similaridade de nossas vidas nas inusitadas diferenças que as tornam única e exclusivamente nossas. É a materialização em palavras do quanto somos parecidos em nossas vivências, ainda que tão diferentes em nossas personalidades, pensamentos e lembranças.

Com sua escrita simples, bem-humorada e reflexiva, recheada dos pensamentos que surgem ao revisitar antigos acontecimentos, o livro nos convida a aproximar-se da vida de um escritor que, quilômetros e quilômetros distante, poderia transformar-se em mero desconhecido contornado por características surpreendentes. Por meio da leitura, porém, ele retorna à humanidade que sempre foi sua, distanciando-se do papel de gênio criativo que a romantização literária tanto tentou nos forçar a normalizar. Haruki Murakami é gente como a gente, e que bom que assim ele é!

O cotidiano de nossas vidas pode ser tão interessante quanto a sucessão de dias que compõem a vida de um renomado escritor, basta olharmos atentamente e recorrermos aos olhares privilegiados que todo bom leitor desenvolve na medida em que avança por entre os vastos limites do mundo literário. E, como na vida, ninguém sabe quando reencontrarei as convidativas e aconchegantes palavras do senhorzinho japonês. A vida dá muitas voltas e nunca sabemos onde ela pode nos levar, afinal, quando autores nos oferecem a mão para um passeio, a única resposta é “sim” e a única certeza é de que devemos aproveitar o momento até o fim, torcendo para que, em breve, ele possa se repetir!

Avaliação: 3 de 5.

  • Ichininsho Tansu
  • Autor: Haruki Murakami
  • Tradução: Rita Kohl
  • Ano: 2023
  • Editora: Alfaguara
  • Páginas: 168
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