Ao longo de aproximados dez anos escrevendo resenhas e críticas para o Estante Diagonal, consolidei o que poderíamos classificar como meu próprio estilo de escrita e análise literária. Trata-se de algo que se repete, em maior ou menor grau, em todo e cada texto que escrevo e aqui compartilho com vocês.

Em minhas análises, busco sempre trabalhar com o texto que me foi fornecido por escritores e tradutores, profissionais da indústria ou mercado literário e cinematográfico. Sempre busquei questionar suas estratégias narrativas, habilidade e criatividade, princípios de verossimilhança, maneiras como, embora meu olhar sobre o texto respeite aquilo que o próprio texto me ofereceu, sempre é possível encará-lo de outras maneiras… respeitando os limites por ele enunciados e não aquilo que nossas mentes nele forçam com intuito de diminuí-lo ou engrandece-lo além daquilo que é.

Raramente efetivo pesquisas com relação aos comentários e análises de outros leitores e/ou críticos literários, pois acredito que minha visão, embora carregada de visões de todos os teóricos escritores diretores que li, deve apresentar-se o mais “minha” possível. Isso não aconteceu com o processo de escrita do texto que hoje vocês encontram… nele, ecoo as vozes de diversos leitores pertencentes a comunidade negra que, em sua criticidade e habilidade, me auxiliaram a reconhecer que o que sentia, essência e verdadeiramente, está relacionado apenas ao texto que me foi oferecido por Tomi Adeyemi, bem como, aos editores e tradutores da Rocco.

Filhos de Aflição e Anarquia, de certo modo, se utiliza das cenas e consequências finais de Filhos de Virtude e Vingança para a construção de sua narrativa. O capítulo final da trilogia O Legado de Orïsha tem início com a confirmação de que Zélie, Tzain, Amari, Inan e vários majis pertencentes ao grupo de rebeldes que lutaram na batalha de Lagos foram capturados, presos e torturados nos porões de grandes embarcações marítimas. O personagem que os vendeu é mencionado brevemente apenas uma vez ao longo do livro e seu destino ou ações subsequentes nunca nos serão reveladas.

“Dezenas de reanimados se transformam em centenas. Em um piscar de olhos, são milhares. Os espíritos do meu povo lutam pelos mares brilhantes, rasgando as ondas estrondosas.”

Acompanhando o sofrimento de cada personagem principal, descobrimos a existência de um certo Rei Baldyr, líder de uma civilização com tendências imperialistas e grandiloquentes que, por anos, percorre os mares em busca de duas moças cuja magia e vitalidade seriam capazes de permitir a realização de um ritual que transformaria o suposto rei em algo como um novo deus. Com Zélie em seu domínio, Baldyr consegue a primeira peça necessária para realização do ritual. Enquanto majis lutam por sua liberdade no convés da embarcação, a ceifadora descobre os horrores cometidos por aquele povo distante, sendo marcada como sacrifício ao ter um antigo medalhão cravado em seu coração. O medalhão modifica seu sangue, altera sua magia, permite que entenda línguas estrangeiras e a conecta com algo ancestral… porém, também a marca como posse de Baldyr, delimitando seu comando sobre ela.

Quando personagens e leitores menos esperavam, um vilão desconhecido e nunca antes mencionado se apresenta, transformando a narrativa em uma espécie de missão contra o tempo, questão de vida ou morte, a busca pela outra peça do encantamento. Agora, Zélie deve encontrar forças para conter o domínio do rei, seus amigos devem unir-se a fim de encontrar a moça em perigo e Orïsha, antes tão presente e tão viva no ambiente da história, transforma-se em pano de fundo necessário apenas para alinhar necessidades de enredo e definir novos antigos aliados.


Seis anos após me apaixonar pela escrita de Tomi Adeyemi, me encantar pela pesquisa habilmente inserida num livro que buscou nos apresentar a mitologia Iorubá, me surpreender com um universo rico e autossuficiente em seus próprios detalhes, limites e contextos, além de me perceber cativada pela jornada de personagens cujas dores, alegrias, perdas e magia evocam aquelas vivenciadas por um povo que, ainda hoje, enfrenta as consequências e injustiças de uma sociedade baseada na valorização de uma cultura em detrimento de todas as outras, me despeço da trilogia O Legado de Orïsha com o sentimento de que muito potencial foi desperdiçado a fim de que se abraçassem todas as nuances, dores, luta e caminhos percorridos pelo povo negro.

A partir de uma narrativa de fantasia, a escritora nos permitiu refletir sobre povos que escravizavam outros povos, sobre preconceito perante cor, cultura e classe social, sobre os mais diferentes tipos de injustiça, sobre perseguição e aprisionamento, sobre traumas que são transmitidos de geração para geração. Em três livros que, pouco a pouco foram tornando-se mais curtos –, a escritora abordou, escreviveu e ressignificou momentos marcantes da trajetória e luta do povo negro. Ela nos ofereceu personagens incríveis, um universo maravilhoso e questões preciosas, e apesar de reconhecer e valorizar tudo isso, é com o texto final que trabalho e será ele, além da tradução e revisão da Editora Rocco, que criticarei a seguir.

Filhos de Aflição e Anarquia, muito mais do que um livro apressado, parece tratar-se de um livro cujos direcionamentos indicam a falta de clareza com que se manipulou o universo literário. Isso aliado a falta de habilidade ao interligar precedentes narrativos e objetivos de escrita à necessidade de construção de um capítulo final, sem contar a falta de direcionamento ou recortes com relação ao que inserir e o que retirar do universo.

O próprio mapa de Orïsha demonstra-se perdido nas vontades da criadora, uma vez que não foi atualizado e não localiza os novos territórios, os novos povos aliados e povos inimigos encontrados pelo caminho. O que antes compreendia-se como a luta de um povo perseguido, escravizado e dizimado, agora transforma-se na luta de um grupo – pois os verdadeiros encontros com o povo e território de Orïsha tornam-se breves e artificiais – perseguido a fim de satisfazer os anseios de um Rei que até então desconhecíamos. A luta por uma Orïsha unificada ocorre no último capítulo e não toma mais do que duas páginas. A fuga dos navios, reencontro dos membros restantes do grupo maji, encontro com uma nova e utópica civilização, luta contra Baldyr e retorno da magia tomam um livro inteiro, pouco o conectando com os eventos e precedentes de seus antecessores.

Devido a pressa com que se almeja concluir a trilogia, trechos importantes de história são iniciados e finalizados sem que o texto tenha tempo, fôlego e espaço para aprofundá-los. Em complemento, usando uma analogia com a produção e análise de filmes e seriados de televisão, é perceptível a mão da escritora no direcionamento, cortes e movimentos de “roteiro”. Ou se evita fornecer informações sobre como se chegou onde chegou em determinado momento narrativo, ou se alinha personagens, situações e consequências de maneira que seja possível consolidar determinado resultado sem necessitar de páginas de aprofundamento, explicação e alinhamento para tanto.

Saiba mais da trilogia O Legado de Orïsha

Por fim, com relação às escolhas de tradução e revisão da Editora Rocco, questiono a constante repetição de palavras iguais em frases subsequentes, a busca por similares brasileiros para palavras de origem africana – escolha tradutória que domestica os termos africanos e parece seguir percurso contrário aquele abordado ao longo do livro -, a maneira como frases e parágrafos se constroem de maneira simples, sem qualquer detalhamento, praticamente livres da vida que pulsava no texto do primeiro e segundo livros da trilogia em suas versões de língua inglesa. É verdade que não tive contato com a versão em inglês do último volume da série e, por esse motivo, não posso mensurar até onde os problemas que encontrei são de responsabilidade do texto de partida ou das estratégias de tradução, mas acompanhar textualmente os detalhes que acompanhei ao longo da leitura contribuíram ainda mais para o desanimo e sentimento de decepção com o livro.

Filhos de Aflição e Anarquia poderia ter se subdividido em dois livros e, quem sabe assim, ter encontrado o fôlego necessário para abordar e aprofundar as temáticas e detalhes que sua autora buscou trabalhar. Filhos de Aflição e Anarquia poderia ter finalizado os arcos de personagem e percursos precedentes à publicação do terceiro livro e, quem sabe assim, ter finalizado a trilogia de maneira verosímil e condizente com aquilo que se vinha alinhando. Filhos de Aflição e Anarquia, como tantos e tantos leitores mencionaram, decepciona por abandonar seu potencial em detrimento de um caminho de opções com as quais não soube trabalhar habilidosa e racionalmente. Assim, pouco adianta adicionar quotes de grandes veículos de comunicação ou promessas de um filme que até o momento não deixou o plano das ideias… a história deixa de se sustentar em si mesma e, quando isso ocorre, percebe-se que o problema nunca esteve na história, mas sim em seu próprio processo de criação.

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