Não consigo me lembrar de alguma vez ter abordado esse assunto com vocês, mas, caso nunca tenha compartilhado alguns detalhes acerca de meu processo de escrita de resenhas e críticas para o Estante Diagonal, finalmente encontrei o momento ideal para iniciar essa discussão com nossos leitores.

Quando sento na frente do computador e abro o arquivo de texto onde irei depositar todas as minhas opiniões e reflexões sobre o livro, filme ou série, preciso realizar algumas escolhas. Normalmente estas escolhas estão relacionadas aos detalhes que planejo abordar e quais elementos deixarei de fora da resenha, à quais direcionamentos tomarei e qual nível de aprofundamento pretendo atingir com meu texto, além disso, busco sempre apresentar uma visão reflexiva ou até mesmo diferenciada da obra, evitando simplesmente destacar se gostei ou não da história. Contudo, no caso específico de Através do Vazio, minhas escolhas se iniciaram na introdução do texto, no início da resenha, pois preciso avisar aos leitores que serei extremamente crítica e talvez até um pouco chata quando da análise desta obra.

Optei por avisar acerca do nível de críticas e irritação com relação a este livro pois, como mencionei, sempre prezo por certo nível de aprofundamento e reflexão em minhas resenhas, assim, não poderia deixar de lado minhas análises e decepções e simplesmente pegar leve com o livro. Da mesma forma, tenho orgulho de toda a pesquisa que realizei – além dos estudos que realizo até hoje – com relação aos gêneros literários ficção científica e distopia, assim, simplesmente não poderia deixar de lado tudo o que aprendi e descobri e pegar leve com o livro. Deste modo, teremos aqui um texto que pretende expor detalhes de um livro que tinha tudo para ser o “melhor thriller de sobrevivência no espaço desde Perdido em Marte”, mas que se perdeu em clichês, falta de aprofundamento e embasamento científico, romance ultrapassado entre personagens principais e, aqui pego pesado mesmo, a perpetuação da crença de que o “amor” é uma das principais coisas para que as mulheres foram criadas.

Em meio a uma imensa e ultra tecnológica espaçonave de pesquisa localizada nas proximidades de Europa, uma das luas do planeta Júpiter, a Comandante Maryam Knox acorda atordoada de um coma induzido. Sofrendo com dores musculares, amnésia, desidratação e os resquícios de uma doença desconhecida, May conta somente com o auxílio da inteligência artificial da nave para descobrir o que aconteceu com sua tribulação, porque a espaçonave encontra-se em estado deplorável, qual doença pode ter acometido sua saúde e levado a equipe médica a acreditar que a melhor opção era sedar a comandante e induzir um coma. Impossibilitada de estabelecer qualquer tipo de contato com a NASA, May precisa descobrir como consertar a nave espacial, delimitar seu afastamento do curso original e reposicionar a imensa máquina em direção a Terra, além de solicitar ajuda o mais rápido possível.

Enquanto isso, no planeta Terra, observamos seu ex-marido, ou marido, ou marido-ex-marido (a narrativa percebe-se fortemente interessada em fazer o leitor questionar acerca do estado civil e amoroso dos personagens), o pesquisador Stephen Knox enfrentando o alto escalão da NASA e membros da missão com possíveis interesses questionáveis para trazer em segurança a mulher que ama, ou não ama, que o magoou profundamente, mas ao mesmo tempo não o magoou tanto… e assim o leitor sem muita paciência para romances românticos vai revirando os olhos a cada página de dores de amor e alegrias de amor e toda uma história de amor.

Através do Vazio, ao contrário de tudo o que possam afirmar, é somente uma história de amor clichê envelopada com elementos de pseudo ficção científica e lacrada com uma atmosfera de mistério e tensão. Para leitores pouco acostumados com ficção científica ela pode apresentar-se como uma obra interessante e até mesmo uma verdadeira surpresa literária. Para leitores que valorizam uma história de mistério repleta de reviravoltas esse livro pode agradar, uma vez que se constrói de maneira a oferecer ao leitor cenários onde diversas coisas dão errado e os personagens devem encontrar formas de solucionar o problema… apenas para encontrarem outro problema a ser solucionado no próximo capítulo. Porém, embora se trate da primeira ficção científica escrita por S.K. Vaughn um “escritor e roteirista de três best-sellers internacionais”, simplesmente não posso ignorar minha consciência crítica apenas para relevar as escolhas de um autor que decidiu se aventurar por um gênero que tanto amo e defendo.

Preocupa-se pouquíssimo com dados, saberes, informações e transmissão de contextos ao leitor. Seja com relação ao nível em que se encontra a ciência e tecnologia da época, aos detalhes específicos relacionados ao funcionamento da nave espacial, aos discursos maravilhosos acerca de ética, moral e filosofia da ciência, além da hierarquia e possíveis jogos de poderes que acontecem na NASA, o aprofundamento é inexistente. O autor não explora os conhecimentos que dão base à narrativa, não explica para o leitor os detalhes e peculiaridades que seriam tão interessantes de serem observados com relação aos avanços científicos que, no caso deste livro, são praticamente inexistentes. Apropria-se de informações rasas de tecnologias de ponta atuais e acredita-se que todo e qualquer leitor irá reconhecer do que se trata e como se aplica.

Confira a crítica da adaptação de Perdido em Marte

O foco está completamente voltado nos personagens principais, no romance, no mistério com relação ao que aconteceu com a espaçonave e quem poderia lucrar com a sabotagem da missão, além de momentos tensos, repletos de explosões e astronautas sendo jogados para lá e para cá sem nunca sofrerem qualquer ferimento fatal. S.K. Vaughn se apaixonou pela criação de cenas onde May precisa resolver situações e problemas graves. Seja por conta própria, com auxílio da Inteligência Artificial da nave ou recebendo ajuda de seus colegas e ex, ela sai de um acontecimento perigoso apenas para entrar em outro, e outro e mais outro. Comparando com Perdido em Marte – já que se optou ousadamente por estabelecer esta comparação – Através do Vazio não oferece ao leitor tempo suficiente para respirar, para assimilar os acontecimentos e informações. Em Perdido em Marte cada ação do personagem está embasada em saberes científicos capazes de o manter vivo por mais um dia ou semana, neste livro não recebemos informações suficientes com relação a como as ações de May afetam sua sobrevivência, recebemos apenas mais tensão cinematográfica e uma mulher super girl-power que consegue ser arremessada várias vezes pela nave sem morrer!

Para fechar a lista de desgostos e aspectos que gostaria de ver melhor trabalhados ao longo da narrativa, temos o delineamento de personagens. Desde o início senti dificuldades em me conectar com qualquer, repito, qualquer dos personagens apresentados. Mesmo com os flashbacks, os momentos em que discutiam seus sentimentos, as passagens em que duvidavam de si mesmos ou defendiam ideais, percebia sempre algo estranho, algo faltando, algo que impossibilitava o surgimento de preocupação, carinho ou mesmo curiosidade para com seus desafios e contextos. Suas falas não pareciam suas, suas atitudes não pareciam genuínas. Minha sensação ao observar esse livro é que existia sempre alguém ditando as falas, as posições no palco, as formas como deveriam agir ou reagir. De moralistas à palestrantes à adolescentes apaixonados à profissionais que parecem agir inconsequentemente, fui incapaz de perceber características que verdadeiramente acompanhassem cada personagem ao longo da narrativa e, assim, não conseguia enxergá-los ou torcer por eles.

Apesar de tudo, não se enganem com minhas críticas, reclamações e comentários, a escrita do autor é acessível, direta, trabalha razoavelmente bem com a criação de uma atmosfera de tensão e com o estabelecimento de um romance entre uma piloto astronauta e um cientista. Como destaquei, este livro pode agradar diversos leitores, funcionando também como uma espécie de porta de entrada capenga para a ficção científica. Ele possui pontos positivos, como a facilidade com que será adaptado para o cinema, quando e se for adaptado. Seu romance, mistério e tensão com certeza conquistarão leitores que preferem ação à embasamento científico e um casal apaixonado lutando para se reencontrar à construção de uma protagonista feminina forte e distante das clássicas estratégias de Hollywood.

Através do Vazio não funcionou para esta leitora que vos fala, porém isso não significa que não funcionará para outros leitores. No fim, esta é minha visão da obra e, como em todo texto que escrevo, busco aprofundar características de narrativa que talvez tenham passado despercebidas por outras pessoas. Agora, cabe a vocês escolherem o que fazer com tudo o que destaquei.

  • Across the Void
  • Autor: S.K. Vaughn
  • Tradução: Renato Marques
  • Ano: 2019
  • Editora: Suma
  • Páginas: 372
  • Amazon

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