Anna perdeu a mãe quando ainda era muito nova e apesar ter sido profundamente amada pela avó e pelo pai, ela sentia que uma parte muito importante dela mesma havia se perdido. Havia um vazio imenso em seu coração, que ela queria desesperadamente preencher. Quando descobriu que estava grávida, seu mundo ganhou novas cores, um novo sentido e sua alegria finalmente foi plena. Parece que ela esperou a vida toda por Chloé e o cheirinho de bebê da filha se tornou sua fragrância favorita. Alguns anos depois sua alegria dobrou de tamanho com a chegada de Lily, que ao contrário da irmã chorava muito e exigia muito mais atenção. Mas Anna se entregou inteira ao papel da maternidade e pensou que seus esforços seriam suficientes para que as filhas fossem felizes e realizadas. Mas então ela precisou se divorciar por motivos que as meninas não entenderiam, e agora sua vida parece está novamente fora dos trilhos.

Desempregada e com uma enxurrada de dívidas, Anna não sabe mais o que fazer para suprir as necessidades financeiras e emocionais das filhas. Ela queria ter mais tempo para ficar com elas, para ouvir sobre aquelas vidas que lhe eram tão preciosas. Mas a responsabilidade de manter um lar sozinha atropelou todos seus desejos e caprichos. Chloé já está em 17 anos e parece uma estranha na própria casa. As duas não conseguem manter uma conversa por mais de cinco minutos. Lily se esforça para ser madura mesmo que tenha apenas 12 anos. Ela sofre bullying na escola, mas Anna só descobriu quando a diretora lhe telefonou. Elas dividem uma casa, mas estão distantes demais umas das outras. Quando Anna é demitida e a relação com as filhas parece se desintegrar mais a cada dia que passa, ela toma uma decisão inesperada: fazer uma viagem de motorhome pelo norte do continente europeu para presenciar de perto o espetáculo da natureza chamado Aurora Boreal. Elas estarão juntas, em um espaço minúsculo, com todo o tempo do mundo, vivendo uma aventura, o que poderia dar errado?


Acredito que muitos de vocês tenham uma lista de coisas a serem feitas antes de morrer. Eu pelo menos tenho, e por mais que pareça mórbido pensar nessas coisas, a perspectiva de fazer algo tão incrível sempre me dá uma dose extra de esperança e motivação. Conhecer as pirâmides do Egito, voar de balão na Capadócia e por último, mas não menos importante, ver de pertinho a Aurora Boreal. Graças a esse livro, pude incluir mais uma atividade à minha lista: fazer um passeio de caiaque pelos Fiordes da Noruega. O que isso tudo tem a ver com a obra mais recente de Virginie Grimaldi? Na verdade não tanto quanto eu achava que teria… mas tão magico quanto eu precisava que fosse.

É estranho, estávamos como que num estado de transe. Minha mãe não girou a chave imediatamente. Até mesmo Lily estava quieta. Mas aquele era um silêncio diferente. Ele nos aproximava. Tínhamos acabado de ser nocauteadas pela beleza do mundo.

A autora francesa nos apresenta um drama de proporções leves, que nos leva a refletir sobre a vida enquanto nos presenteia com descrições singelas e deliciosas de uma paisagem idílica. O enredo aborda questões familiares aparentemente simples, mas que vão ganhando força no decorrer das páginas. Narrado pelas três protagonistas dessa história, o livro brinca com nossas emoções ao nos apresentar as várias nuances das personagens que são tão diferentes entre si, mas que possuem um único objetivo em comum, encontrarem a si mesmas. Anna é uma mulher de força extraordinária que luta arduamente para manter a harmonia do lar, sem deixar de atender as necessidades das filhas. Ela questiona seu papel como mulher e como mãe. Ela sente medo, inseguranças e principalmente amor. Ela transborda amor em seus relatos. É a maternidade representada de um ponto de vista singelo e delicado, porém nada perfeito. Não existe manual para ser mãe ou pai e isso fica nítido enquanto acompanhamos as atitudes e pensamentos de Anna. Ela erra tentando acertar e essa percepção exige uma maturidade que eu só tenho hoje.

Permanecendo em minha bolha, eu limitava os riscos. Até decidir fazer aquela viagem. Não parei para pensar. Não pensei em mim. Minhas filhas precisavam de ar, então furei a bolha.

Ao mesmo tempo, alguns trechos mostraram uma Anna extremamente dependente emocional dessas filhas que ela tanto ama. Como se ela só soubesse ser mãe. Como se a Anna mulher tivesse desaparecido e deixado no lugar uma pessoa desesperada por afeto. Eu não sou mãe, mas já fui filha, e lembro-me da responsabilidade exaustiva que é ser a única fonte de alegria e realização de alguém. É um fardo que ninguém deveria carregar. A trama não chega a romantizar essa questão, e todas as personagens passam por grandes transformações e amadurecimento, até mesmo a progenitora. Foi um lindo desabrochar de mãe e filhas.

Chloé sente que não é amada. Reproduz o mesmo padrão que a mãe, com a diferença que ela direciona toda a carência que sente para caras babacas que só querem usá-la. É triste demais acompanhar suas tentativas frustradas de fazer algum deles ficar. E não porque ela transa no primeiro encontro ou por se mostrar sempre disposta a fazer qualquer coisa que um deles queira. Ela merece ser amada. Esses homens a quem ela se apega, é que não estão dispostos a dar o amor que ela acha que precisa. No fundo ela tem um coração altruísta, apesar de todas as palavras rudes que insiste em dizer para a mãe. Ela ama essa mãe, mas também odeia que a separação dos pais a faça se sentir tão sozinha.

Lily é de longe minha personagem favorita. Eu simplesmente gargalhava com suas confidências no diário que ela chama de Marcel. Ela tem 12 anos, mas por incrível que pareça consegue ter a maturidade necessária para lidar com os problemas financeiros da mãe e os ataques de raiva de Chloé. Ela é gentil, engraçada e muito inocente. O tom doce de seus textos ameniza os relatos mais densos das outras mulheres da sua família. A autora construiu muito bem os capítulos, a disposição deles contribui com a fluidez da leitura e torna o ritmo delicioso. A história é conduzida de forma suave, como uma dança.

Virginie Grimaldi ainda encontra espaço para falar de alguns assuntos mais sérios e apesar da delicadeza da escrita, eles não são abordados de forma leviana. Os demais integrantes da trama, que são os companheiros de viagem dessas mulheres, são extremamente interessantes. Suas histórias e dramas também ganham certo espaço nas linhas, nos deixando mais próximos a eles. Senti imenso carinho pelos vovôs, e também por Julien e seu filho, que possui transtorno do espectro autista e por quem Lily rapidamente se afeiçoa.

Avisei minha mãe que, quando crescer, quero trabalhar com baleias. Ela riu. Não sei com que idade as pessoas perdem os sonhos, mas espero nunca chegar lá.

O livro já seria bastante completo por si só, mas a autora ainda nos brinda com um emocionante relato turístico pela Europa setentrional. As descrições são tão realistas que é como se estivéssemos em cada um daqueles lugares. Quase é possível sentir o frio congelante da Noruega, ou o calor crepitante das fogueiras no acampamento. Eu fiquei apaixonada pela aventura, pelo drama e pelo desenvolvimento da história. O desfecho não é grandioso ou cheio de revelações. Gradativamente fomos acompanhando o crescimento das personagens, as mudanças em sua relação e principalmente a forma com a qual elas encaram a vida.

Teve um único ponto negativo, que foi um detalhe revelado nas últimas páginas que me deixou bastante desconfortável a respeito das motivações de Anna de fazer a viagem, e acho que de certa forma, não combinou com a personagem que conhecemos desde o primeiro capítulo. Como se essa Anna das últimas páginas fosse uma estranha nos sendo apresentada pela primeira vez. Como se esse capítulo tivesse sido inserido às pressas. O detalhe desagrada mas não desabona. Essa é ainda uma leitura que você merece conhecer.

  • Il est grand temps de rallumer les étoiles
  • Autor: Virginie Grimaldi
  • Tradução: Julia da Rosa Simões
  • Ano: 2020
  • Editora: Editora Gutenberg
  • Páginas: 288
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