Os processos de visão retrospectiva são algo verdadeiramente curioso, peculiarmente fascinante, não é mesmo?! Quando criança, tão encantada e apaixonada pelo universo das animações Disney quanto sou enquanto adulta, me divertia com aventuras por lugares misteriosos e inexplorados, histórias românticas e romantizadas sobre princesas e príncipes, surpreendentes narrativas protagonizadas por animaizinhos humanizados que tantas mensagens foram capazes de transmitir. Na mesma medida, encontrei personalidades que muito me espantaram e, dentre os clássicos vilões e vilãs Disney, Cruella sempre foi aquela que profundamente me assombrava! Minha mente infantil enquadrou a personagem como a pior pessoa fictícia da história de todas as histórias, afinal, uma mulher que alucinadamente persegue 101 adoráveis cãezinhos com o intuito de transformá-los em casacos de luxo, não poderia classificar-se como nada além do que a mais abominável vilã tão encantadoramente nos apresentada.

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Ao longo dos anos, na medida em que desvendava algumas das nuances deste mundo curioso e, localizando-me nos mesmos níveis de aprofundamento de personagem que repetidas visitas à animação 101 Dálmatas possibilitaram coletar, transformei o assombro espantado em conclusões de que Cruella necessitava, não apenas receber tratamento psicológico e psiquiátrico adequado, como também educar-se contra a crueldade animal, alterando posicionamentos hegemonicamente perpetuados por anos de história humana por visões favoráveis ao cuidado harmônico para com todo e cada ser vivente que divide este mundo com nossa racionalidade confusa. Deste modo, ainda que a animação pouco abordasse a trajetória de uma das vilãs mais icônicas criadas, construí um carinho peculiar por entre dimensões nunca retratadas da personagem… até o momento em que fui confrontada com a primorosa narrativa de suas peculiares e polêmicas origens.

A Cruella de Emma Stone, redimensionada e reapresentada por uma Disney em vagaroso – por vezes tendencioso e peculiarmente promissor, aos olhares de uma otimista incorrigível – processo de reformulação e reposicionamento, recebe tempo de tela para expressar sua trajetória enquanto Estella, a talentosa e revolucionária orfã, melhor amiga de Horácio e Gaspar, origem de controvérsias tão maravilhosamente interligadas ao contexto narrativo de 101 Dálmatas. Em suas duas horas e quatorze minutos de filme, não somente se exploram as nuances da personagem, aprofundando-se em traumas, motivações e traços de personalidade, como expande-se o tão querido e conhecido universo apresentado pela animação de 1961.

Ainda que os primeiros minutos do longa nos possibilitam compreender aspectos determinantes da infância de Estella, partindo de seu relacionamento com a mãe, sua intrínseca rebeldia e sua relação conturbada com as regras limitantes da sociedade, até nos conduzir à sequência de acontecimentos que transformam sua realidade em realidade de órfã. A tristeza do momento, contudo, direciona para o encontro e formação da amizade com Horácio e Gaspar, personagens que, como Estella, enfrentam o mundo enquanto órfãos pertencentes a contextos de periferia, destinados a uma vida de possibilidades limitadas, pobreza e desafios tais que a sociedade civilizada pouco demonstra esforços para reduzir. Reunidos e interconectados os elementos principais da narrativa, avançamos por aproximadamente vinte minutos de filme e, entendendo o percurso trilhado pela protagonista, estamos prontos para desvendar o que a história verdadeiramente tem para oferecer.

Ambientadas na efervescente Londres de 1970, período de nascimento e ascensão da cultura punk, as duas horas restantes delineiam o conjunto de eventos que garantiram um emprego inferior às habilidades e sonhos de Estella, possibilitaram sua demissão, imediato reconhecimento pela renomada estilista Baronesa Von Hellman, consequente ingresso no mundo da alta costura, na indústria da moda e, relembrando a essência da protagonista que estamos acompanhando, inesperados conflitos, inusitadas e encantadoras criações, intrincados planos de vingança, possíveis tentativas de assassinato e alianças que fazem os olhos de qualquer apaixonado pelo universo Disney brilhar mais forte!

Fortemente interligado às especificidades delimitadas pela animação de 101 Dálmatas, Cruella é, definitiva e encantadoramente, uma surpresa para os aficionados por “prequels” e “live actions”. Trata-se, e aqui me expresso como redatora peculiarmente tendenciosa, da mais instigante demonstração daquilo que se é possível realizar quando, não apenas respeitamos os materiais precedentes, mas também exploramos detalhes nunca abordados, histórias nunca contadas, nuances contemporâneas que garantem vida e frescor às histórias que residem em nosso coração.

A Cruella de 2021 é compreensível, curiosamente perigosa, perigosamente maníaca, carregada de parcelas de vítima e culpa, contudo, nunca justificável. As consequências de suas ações, os contextos em que seus caminhos desembocam são tão condenáveis quanto as atitudes e conspirações de seus antagonistas. Cruella é homenagem e homenageada perante sua essência, é construída por meio de aspectos que muito nos espantam, encantam, assombram, deixam curiosos ou nos fazem apaixonar. E, deste modo peculiar, surge a beleza de observarmos na personagem uma verdadeira anti-heroína. Acompanhar o percurso tortuoso de Cruella é conhecer seu passado, entender seus traumas, perceber as injustiças da sociedade perante sua individualidade, reconhecer o protagonismo de seus erros nos frutos maduros ou decadentes que colheu… é assumir sua personalidade e desvendar os segredos por trás de histórias habilmente elaboradas por mídias enquanto se descortina uma nova verdade em nossa mente.

O cuidado no estabelecimento de fiéis inter-relações, a atenção extrema aos mínimos detalhes visuais, as maneiras como o filme explora elementos da animação de 1961 e garante espaço para a elucidação criativa de determinadas lacunas é primorosa, é demonstração da possibilidade de lançamento de adaptações bem-sucedidas que são leais, na mesma medida, a novos direcionamentos e ao material que permitiu sua criação.

Confira a crítica de Coringa

Neste ponto, considero interessante mencionar as comparações entre a Cruella de 2021 e um certo Coringa de 2019. A anti-heroína que finalmente relata sua história, a expressa em todas as suas falhas, maniqueísmos, controvérsias, polêmicas e encantamento. Da mesma forma, o anti-herói vencedor do Oscar de Melhor Ator delineou e nos permitiu compreender as nuances de sua existência, a perversidade de uma sociedade que destrói e deturpa aqueles que necessitam de seus sistemas. Analisando pela expressão e exposição da verdadeira essência dos personagens, podemos comparar obras e atuações, ambas maravilhosas, pertinentes e cativantes. Porém, Cruella é Cruella e Coringa é Coringa. Os ecos de um, embora inegáveis, não definem a força e direcionamentos do outro! Talvez por esse motivo Cruella se finalize com promessas de algo mais, um quê de final feliz, uma atmosfera curiosa de amor por alguém que sabemos não dever amar.

Com figurinos que desejaria adquirir e manter orgulhosamente em minha humilde e nada punk coleção de roupas, trilha sonora acertada, atuação primorosa de nossa amada Emma Stone, além de uma narrativa repleta de nuances, teorias e interconexões, Cruella é um acerto da imprevisível e instigante onda de “live actions” e “prequels” produzidos! É um filme para os amantes de Coringa – risadas de Estella e Arthur Fleck ecoando ao fundo – e 101 Dálmatas, para os aficionados por filmes e apaixonados pela Disney que por tantos anos nos acompanhou. É um filme para nos relembrar que todo personagem, mocinho ou vilão, possuí uma trajetória e nem sempre ela será como imaginamos, mas, ainda que condenável, nos é possível amá-la a nossa própria maneira.

  • Cruella
  • Lançamento: 2021
  • Com: Emma Stone, Emma Thompson, Joel Fry, Paul Walter Hauser
  • Gênero: Live action, drama, aventura
  • Direção: Craig Gillespie

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