A Pediatra | Andrea Del Fuego

15 jul, 2022 Por Viviane Papis

Há algo que me captura em certos livros que se propõem a fazer demonizar suas personagens, que me fazem repudiar ao mesmo tempo que me aprisiona e captura na história. Quando A Pediatra começou a borbulhar pelos canais literários após seu lançamento em outubro de 2021, não imaginava que disso se trataria todo burburinho que constantemente chegava a mim. A polêmica que circunda o livro é semelhante com o presente em A Filha Perdida, mas aqui a autora Andrea Del Fuego construiu uma mulher que representa tudo aquilo que é considerado repugnante e incorrigível acerca dos assuntos da maternidade e, considero eu, da decência humana.

De início, fica muito claro o cinismo e desinteresse de Cecília, personagem principal e narradora da história. Ela se apresenta como mulher que detesta criança e doença, mas trabalha como pediatra. Não há qualquer paixão sua por outras pessoas e muito menos por sua profissão. Seu desempenho e profissionalismo exemplares pautam-se exclusivamente em seguir os protocolos médicos que aprendeu nos anos de estudo e treinamento. Não toma esforços para se adaptar às demandas dos clientinhos ou mesmo demonstrar afeto com eles. Ela vive uma vida “simples” e sem muitas demandas e um casamento infeliz que praticamente não a afeta.

O primeiro elemento que causa alguma disrupção na sua rotina é o envolvimento com Celso, um homem casado, que que após descobrir a mulher grávida, contrata Cecília como neonatologista de seu filho a nascer. A relação dos dois vai e volta sem muita afetação por parte de Cecília, que analisa esse caso e mesmo a separação do marido com precisão cirúrgica. Somada a essa história, Cecília encontra diversos outros eventos que a deslocam das rotineiras consultas infantis e partos cesariana: a descoberta de um novo pediatra, Jaime, que incentiva o parto natural (procedimento que ela condena com precisão médica até compreensível), a gravidez inesperada da sua empregada doméstica e o retorno de Celso com seu menino.

De todo o livro, o que mais me saltou à atenção foi a disparidade entre o tom da narradora, tão cínica e displicente, e as ações que passa a tomar no decorrer da história, o nível de obsessão que a toma ao descobrir, por exemplo, que está sendo substituída pelo new age Jaime e a doula, a ponto de se esgueirar para dentro da “seita” e partir seus questionamentos de um lugar de superioridade, apontando erros médicos e éticos que eles cometem com essas mães, mas que pouco se interessa com o desejo ou sofrimento dessas mães. O que está em jogo aqui para Cecília é recuperar seu lugar no hospital e na ala da maternidade.

A Pediatra é uma leitura muito sagaz em trazer reflexões interessantes, ainda que desconfortáveis, sobre aquilo que foge aos instintos, à moral, aos contratos sociais que regem nossa vida harmoniosa. Ao criar Cecília, sinto que Andrea pôde dar voz àquilo que não nos permitimos deixar emergir mas que existem lá no fundo. O formato da narrativa, que segue o fluxo de pensamento da personagem com precisão e sem floreios, engaja o leitor nas loucuras que ela adentra, sem perceber onde ela nos levará. Justamente por estar descarregada, superficialmente, de afetação emocional, ela nos convence de que todas suas ações e tomadas de decisão são lógicas e justificadas, querendo se provar melhor que os outros por ser boa profissional só pela ciência e sem afeto. As mudanças ao longo do enredo, em especial seu envolvimento com o menino de Celso, só provam a mim que seu discurso “cientificista” e frio rege sua sanidade, mas não a impede de se convencer e mergulhar nos seus julgamentos que acredita serem os mais corretos e verdadeiros possíveis.

O frescor que A Pediatra me causou não se pauta na narrativa per se, na minha identificação com a personagem Cecília, ou do tema da maternidade e pediatria. Está no envolvimento com um livro que eu discordo profundamente, que não compro as justificativas, repreendo sua completa oposição ao parto natural – talvez porque envolve ver as parturientes como sujeitos no mundo e lidar com seus fluidos e não como procedimento médico? Para além do entretenimento, a arte que Andrea faz aqui em A Pediatra é incômoda e permite surgir novos horizontes de contemplação e compreensão de si.

  • A Pediatra
  • Autor: Andrea Del Fuego
  • Tradução: -
  • Ano: 2021
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 160
  • Amazon

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