À Deriva | Bryan Lee O’Malley

07 out, 2022 Por Viviane Papis

Raleigh é uma jovem tímida e reservada, que se vê entre (des)conhecidos em uma roadtrip pela costa leste estadunidense. Acompanhada desses colegas de escola de quem mal sabe sobre, Raleigh nos conta que tem certeza de que lhe falta uma alma, perdida em algum momento de sua vida. E em um diálogo interno voltado para quem esteja lendo, a jovem narra suas razões para acreditar-se desalmada e os eventos de sua vida que a levaram a esse estado de profunda reclusão e sensação de vazio.

Em uma breve, porém intensa história sobre sofrimento emocional, amizade e gatos (sim, muitos gatos), o autor Bryan Lee O’Malley captura através dessa personagem tão particular temas tão comuns à geração Y que tanto retrata nas suas obras. O’Malley é um cartunista canadense conhecido mundialmente pela série de quadrinhos Scott Pilgrim, Repeteco e mais recente, Garota-Ranho. No seu primeiro quadrinho já demonstra todo seu talento em representar temáticas sérias e tocantes através de elementos fantásticos e metafóricos que retratam a subjetividade de seus personagens.

Confira a resenha de Garota-Ranho

O que mais me toca na história é a sensibilidade com que O’Malley consegue costurar as memórias e pensamentos de Raleigh com as experiências que ela passa com esses conhecidos de escola e se permite aos poucos se tocar pelas provocações que suas particularidades geram nela e no seu passado. Me identifiquei muito com a personagem, talvez por justamente fazer parte dessa geração que sente tanta dificuldade em amadurecer diante da crescente demanda de responsabilidades e dada menos oportunidades para desenvolver recursos emocionais para lidar com elas, ou as pessoas ao seu redor.

A sensação de Raleigh estar de fato “à deriva”, tanto em seu mundo interno quanto na viagem para casa, é contagiante e importante para conseguir entrar na sua narrativa. Acredito que, assim como Repeteco, esse livro não é tão fácil de engajar ou aproveitar a leitura como suas outras séries, com mais elementos pop e representação metafórica das mensagens que quer passar. À Deriva é muito direto em apresentar o sofrimento e as perdas de Raleigh, suas insatisfações com uma vida vazia e repleta de separações. E por sua narrativa flutuante, imprecisa, mergulhada na subjetividade da personagem principal, pode causar a sensação de uma história contada pela metade.

Tendo lido Scott Pilgrim e Repeteco antes desse quadrinho de forma alguma me decepcionou com esse formato e conteúdo. Justamente pela aparente simplicidade da história que me permiti mergulhar fundo nas buscas que esses personagens se propõem a fazer juntos numa viagem por acaso, atrapalhada e que provoca mudanças significativas em cada um. Além disso, há já no quadrinho de estreia seu estilo de retratar situações inusitadas, personagens problemáticos que enfrentam seus dilemas de forma muito imatura ou tentar não enfrentar, e que pôde desenvolver com maior genialidade nas obras seguintes, se consolidando como um dos grandes nomes da indústria dos quadrinhos atualmente.

À Deriva foi uma história tão impactante para mim e para o meu momento de vida que creio ter contaminado até demais essas minhas reflexões com essa exagerada simpatia. No entanto, penso que não diminui a obra em si e como ela pode afetar diferentes leitores que não partilham dos meus ideais e da minha história. É cativante ler sobre esses jovens perdidos pelas estradas californianas e que mesmo tão diferentes entre si, compartilham o desejo de fazer algum sentido de onde se encontram e aproveitar o máximo possível enquanto isso.

E ainda mais acompanhar as transformações pelo que passam nesse partilhar da jornada. Ter todos esses temas e me sentir tão tomada por esse quadrinho me fizeram querer mais, acompanhar mais esses jovens para além do que o quadrinho apresentava, mesmo compreendendo o porquê da sua efemeridade e conclusão. A despeito disso, essa leitura com certeza entrou para as queridinhas de 2022 (ou mesmo para toda a vida).

À Deriva, quadrinho de estreia de Bryan Lee O’Malley – traduzido do inglês “Lost at Sea” – foi publicado originalmente em 2003 pela Oni Press e lançado no Brasil em 2018 pela Geektopia, parte do Grupo Editorial Novo Século. A edição que li e a tradução disponível no Brasil faz parte do especial de aniversário de 10 anos do lançamento original, contando com ilustrações novas e antes nunca publicadas. Um trabalho editorial incrível que faz jus à obra.

  • Lost at Sea
  • Autor: Bryan Lee O'Malley
  • Tradução: Mauricio Muniz
  • Ano: 2018
  • Editora: Geektopia
  • Páginas: 192
  • Amazon

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