Como tantos bons livros de minha estante, Lá Não Existe Lá aguardou pacientemente pela oportunidade de ultrapassar as barreiras de minha incansável lista de desejos de leitura até materializar-se em minhas mãos.

Foram anos desde o momento em que me deparei com o título curioso, destacando-se entre as indicações do Goodreads. Anos desde o momento em que observei Margaret Atwood, senhorinha que muito admiro, recomendando e celebrando o livro. Anos desde sua tradução e publicação pela editora Rocco até a chegada do exemplar que, me encarando com leve seriedade, propunha uma leitura desafiante, transformadora e carregada de significados que, em minhas tentativas de aprendizado e desconstrução, ainda tento compreender!

“[…] aproximar-se e ao mesmo tempo manter distância da tradição, para que seja reconhecidamente Nativo e ao mesmo tempo soar novo, é um pequeno tipo de milagre”

Em seu livro de estreia, Tommy Orange interliga pontos de uma teia composta por breves trajetórias ficcionais cujo passado retoma alguns dos momentos mais traumáticos e dolorosos da história norte-americana. Assim, metamorfoseando-se num narrador que comenta e expressa seu posicionamento crítico acerca das convenções históricas, o escritor expõem as mentiras delineadas por anos de manipulação promovida por uma parcela populacional detentora de poder e acesso aos principais meios de comunicação, conhecimento e informação.

Com suas palavras e estilo característicos, o escritor relata as maneiras como o “heroico conquistador europeu” invadiu terras indígenas, expulsou e destruiu comunidades, eliminou indícios de tradições milenares e, na medida em que se consolidava no Novo Mundo e Extremo Oeste, elaborava as narrativas que esconderiam as atrocidades cometidas.

Dentre elas, destaco o curioso mito de “Ação de Graças”, que pouco esteve relacionado a comunhão entre indígenas e brancos, à celebração do acordo de paz entre dois povos provenientes de contextos opostos. Na essência da “Ação de Graças”, Tommy Orange afirma encontrar-se a única e última escolha restante para as tribos que lutaram pelo solo que lhes serviu de lar por gerações. E no dia seguinte à rendição, fogo era ateado a tribos inteiras, demonstrando as reais intenções por trás de palavras brancas.

Partindo de um prólogo que desestabiliza as crenças, percepções e conhecimentos do leitor, além de definir os direcionamentos para compreensão do livro, a narrativa se altera, transformando-se numa coleção de crônicas, pequenos fragmentos repletos de memórias, recortes de trajetórias, desafios, sonhos e sentimentos de descentes indígenas cujas vidas integram os conflitos da modernidade e os traumas centenários da tradição. Na convivência com uma tia-avó que se fortalece para a construção de uma vida segura e estruturada, nos projetos sociais que buscam reviver histórias, chegando à realidade daqueles que vivem com os problemas típicos – e muitas vezes históricos – da periferia, até powwows e a importância da valorização de nossas raízes, família e costumes, o livro expressa o quanto somos semelhantes em nossas diferenças.

Embora cada capítulo seja narrado por uma consciência crítica que nos permite perceber tantos detalhes do exterior, quanto do interior dos personagens, por tratarem-se de pequenos fragmentos de trajetórias que podem não mais intercruzar-se à nossa jornada de virar de páginas, a leitura por se transformar numa verdadeira colcha de retalhos que somente fará sentido quando você for capaz de afastar-se o suficiente para reconhecer o padrão completo.

Assim, é somente com a proximidade do clímax e final do livro que compreenderemos os reais significados e mensagens existentes nas palavras de Tommy Orange. É somente após enfrentarmos os desafios de uma leitura que nos pede atenção, mente e coração abertos, um pouquinho de desconstrução e muita empatia, que observaremos do que se trata Lá Não Existe Lá.

Quando interligamos o choque dos conhecimentos transmitidos pelo prólogo às crônicas de cada personagem que compõem essa história, surpreendentemente percebemos como as feridas de um passado distante, as escolhas feitas por aqueles que nos deixaram e a realidade que nos cerca são capazes de afetar nossas vidas no momento exato do agora …

Nesse exercício de visão histórica retrospectiva, de exposição, por meio da linguagem ficcional, dos desafios sócio culturais enfrentados por indígenas que buscam reencontrar-se num universo que já não parece comportar sua tradição, quando nem mesmo sua tradição parece comportar a contemporaneidade de um universo que já deixou de ser o que um dia foi, busca-se construir um espaço de vivência e resistência. Um espaço ou uma ideia que ainda persista lá quando retornarmos ou nos afastarmos, um contexto que real e efetivamente promova o equilíbrio harmônico entre as tradições de um passado que abriga em si possibilidades de renovar-se, modernizando-se enquanto resguarda seus costumes, incorporando-se à vida de pessoas tão plurais quanto são os seres humanos.

Lá Não Existe Lá é um refúgio que abriga e congrega histórias de indígenas modernos, direcionando a outros indígenas a mensagem de que, em suas trajetórias, sentimentos, sonhos e desafios, nunca estiveram sozinhos. Nas diferenças e peculiaridades da jornada de cada um, existem semelhanças inegáveis que nos aproximam de maneiras inegáveis. Nos eventos desconexos de nossas vidas, no sentimento de não pertencer ou encontrar-se numa sociedade, ambiente ou família, estão também os pequenos eventos, as breves situações em que tudo se alinha a fim de nos permitir, ainda que num piscar de olhos, reconhecer o sentido de tudo.

Lá Não Existe Lá é sobre perder-se e encontrar-se num mundo que se transforma constantemente, é sobre valorizar a tradição e aqueles que vieram antes de nós. Mas, aos olhos dessa leitora branca que possivelmente, em sua ignorância e aprendizado, erroneamente interpretou as passagens do livro, é sobre os traumas e as feridas que a história não foi capaz de curar … e que agora, de maneiras inimagináveis, refletem e interferem em nossas vidas, estendendo-se até o momento futuro em que, enfrentando todo e cada problema, encararmos abertamente a missão de resolver os equívocos e atrocidades que deixamos no passado.

Avaliação: 4 de 5.

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  • Autor: Tommy Orange
  • Tradução: Ismar Tirelli Neto
  • Ano: 2018
  • Editora: Rocco
  • Páginas: 304
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