A Menina na Torre, segundo volume da trilogia escrita por Katherine Arden, inicia-se por meio do delineamento de algumas das mais relevantes consequências dos eventos que observamos ao longo de O Urso e o Rouxinol. Por tratar-se de uma continuação e, principalmente, por estar intimamente ligada ao destino, desafios e aventuras de diversos membros da família de Vasilisa, personagem principal dessa obra, destaco que este texto pode conter spoilers. Apesar de tomar todo o cuidado possível para não liberar qualquer informação crucial à narrativa, deixo aqui o aviso, pois sei que alguns leitores preferem conhecer o mínimo possível das continuações afim de se surpreenderem ainda mais com a leitura!

Após o falecimento de seu pai, quem ofereceu a vida para salvar Vasya e a família das garras do urso mitológico que espalhava destruição, dor e morte pelos domínios de suas terras, Vasilisa busca auxílio e abrigo na residência de Morozco, o demônio ou deus da neve e do gelo. Conhecendo muito bem o seu povo, as maneiras com que agem e pensam, bem como a forma com que a igreja desvirtuou costumes e folclore a ponto de possibilitar que o mais bondoso coração enxergue qualquer pensamento ou atitude divergente como bruxaria, Vasilisa reconhece que não poderá mais viver com seus irmãos e irmãs.

O que você chama de magia é simplesmente não permitir que o mundo seja diferente do que você deseja.

Sob os olhares questionadores e gelados de Morozco a jovem planeja aproveitar sua tênue liberdade, reunindo suprimentos e equipamentos para que, na companhia de Solovey, seu adorável e fiel cavalo, possam conhecer o mundo. Contudo, quando bandidos misteriosos começam a assassinar, destruir e incendiar comunidades inteiras, levando consigo meninas das mais diversas idades, Vasya decide intervir.

Colocando em prática um plano arriscado ela e Solovey resgatam três garotas perdidas e, em meio a fuga precipitada, acabam encontrando o mosteiro onde seu irmão, o monge Aleksandr, encontra-se com os soldados do grão-príncipe de Moscou. Afim de garantir sua segurança após o encontro inesperado com uma porção de soldados e membros da realeza, Vasya transforma-se em Vasili, o irmão mais novo de Aleksandr. Graças a mentira ela conquista a confiança do grão-príncipe, seguindo com seus homens para Moscou após derrotarem alguns dos bandidos que vinham destruindo as terras do monarca que, em meio aos mais variados jogos políticos, não possuía tempo nem dinheiro para salvar ou zelar por suas vidas. Chegando em Moscou Vasya reencontrará a irmã Olga, que demonstra completo desagrado perante a mentira, mas assume parte da responsabilidade, auxiliando irmão e irmã em sua estadia na grande e traiçoeira cidade.

Apesar de iniciar-se com reencontros tocantes, aventuras belamente construídas e mistérios capazes de prometer ao leitor uma maravilhosa continuação, a história de A Menina na Torre somente tem início com a chegada de Vasya e Aleksandr à Moscou. É na grande cidade que os diversos elementos, personagens e detalhes desta narrativa alinham-se para fundamentar as intrigas e jogos de poder existentes nos mais obscuros aspectos da realeza russa; é em meio a este cenário urbano que compreenderemos a delicada e complexa relação entre os governantes russos e o povo comandado pelos descendentes de Gengis Khan; é por entre as casas de ricos e pobres que observaremos como a mudança de crenças e a expansão da religião católica enfraqueceram antigos mitos, ritos e folclore. Por fim, é nesta ambientação modificada, diferente daquela estabelecida ao longo do primeiro livro, que seremos capazes de muito mais do que acompanhar uma nova etapa na vida de Vasilisa e de seus irmãos, conhecer mais detalhes, características e personagens verdadeiramente pertencentes à cultura e história russa.

Com cuidado, delicadeza, talento e uma quantidade considerável de pesquisa, Katherine Arden volta a encantar o leitor com sua escrita acessível, porém carregada de profundidade, detalhamento e propósito. Ao se aproveitar do cenário histórico, sócio cultural da Rússia medieval, a autora demonstra ao leitor elementos e informações que, possivelmente, ele desconhece ou compreende apensar superficialmente. Ao interligar eventos e personagens reais aos mitos, rituais, crenças e folclore russo a autora insere uma espécie de mágica que conquista o leitor e encanta por suas peculiaridades, mas também pelo sentimento adorável que fazem surgir no coração do leitor. Mas é somente quando observamos a maneira com que os detalhes históricos e elementos folclóricos se unem à trajetória de uma personagem fictícia, que transita facilmente por entre os domínios dos contos de fadas e da realidade dura e cruel, que a grandeza e originalidade dessa obra.

Seguindo por um caminho contrário ao de O Urso e o Rouxinol, onde delineavam-se comentários e críticas relacionadas ao papel da mulher na sociedade da época, ao vazio e perda da história de um povo que passa a ouvir os conselhos de padres em detrimento de todo um passado místico, à força inegável e, muitas vezes, destruidora de um pensamento hegemônico, A Menina na Torre restringe o olhar para os desafios, as dores, as perdas e as pequenas liberdades de diversas mulheres. Aqui encontramos os mais diversos pensamentos sobre sacrifícios, destino, aceitação e busca por novos caminhos. Aqui aprendemos a preciosa lição de não julgar com base em nossos olhares restritos, uma vez que nunca seremos capazes de reconhecer com perfeição todos os elementos que possibilitaram a criação desta ou daquela situação, desta ou daquela mulher, destes ou daqueles pensamentos e preconceitos.

Enquanto muitas continuações acabam por transformar-se em decepção para os leitores apaixonados, demonstrando declínio da narrativa ou perda de rumo, o segundo volume desta trilogia mantém a mesma qualidade narrativa de seu antecessor. Com talento, pesquisa e uma direção muito bem fundamentada Katherine Arden promete ao leitor inserir os mesmos elementos que o conquistaram ao longo do primeiro livro, contudo, deixa claro que embora a qualidade narrativa permaneça intacta, a magia tenha espaço para expandir-se e os detalhes de uma cultura distante continuem sendo destacados, esta obra ainda se trata da aventura e desafios enfrentados pela personagem principal. Assim, seremos colocados frente a frente com os sonhos, desejos, dúvidas e, principalmente, erros de Vasya, o que acaba permitindo que, mesmo não concordando com suas ações e decisões, seguiremos incapazes de deixar de amá-la.

No fim, A Menina Na Torre é uma continuação digna da história que pretende delinear. Embora a ambientação mude, os contextos sofram alterações, novos personagens sejam adicionados e este novo volume seja muito mais épico e repleto de magia, mitos, folclore e história, seguiremos apaixonados por uma personagem principal verdadeiramente humana. Neste sentido, mesmo sabendo que poderia finalizar este texto por meio das mais variadas formas, opto por algo simples, indicando mais uma vez essa série e, pedindo, com todo o amor que possuo pela trajetória de Vasya e sua família, que a editora nos presentei com o último volume desta narrativa tão belamente construída, digna de todos os comentários positivos que já recebeu.

  • The Girl in the Tower
  • Autor: Katherine Arden
  • Tradução: Elisa Nazarian
  • Ano: 2019
  • Editora: Fábrica 231
  • Páginas: 335
  • Amazon

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