“E se reuníssemos em um único livro os melhores escritores do terror nacional? Cada um contando uma história, todas sobre um mesmo tema, que se entrelaçam no final? Espera! Precisamos ainda aliar isso a um fato marcante que tenha acontecido em qualquer lugar do país. Não! Em qualquer lugar do país, não, tem que ter acontecido na maior cidade do país, em São Paulo! Mas precisa ser real, tem que ter acontecido mesmo! E se reuníssemos Marcos DeBrito, Rodrigo de Oliveira, Marcus Barcelos, Victor Bonini, Tiago Toy e fizéssemos eles falarem sobre o incêndio do Joelma?”

Eu imagino que essa tenha sido a conversa que rolou na Faro Editorial, na elaboração desse livro, e vamos combinar que não tinha como dar errado, né? Pois o que aconteceu no Edifício Joelma é uma das histórias mais repetidas e um dos fatos mais duros que já aconteceram no coração país. Até hoje, muito se fala sobre o que aconteceu no dia 1º de fevereiro de 1974, um incêndio com quase 200 pessoas mortas e mais de 300 feridas, que ocorreu bem no meio de São Paulo, em um dos prédios mais importantes da cidade e que hoje fomenta uma série de lendas urbanas.

A história do incidente no edifício é extremamente perturbadora, as imagens feitas pela televisão da época de pessoas se jogando do terraço para escapar de uma morte mais violenta, com certeza já são aterrorizantes o suficiente para tornar esse acontecimento um belo enredo para um livro de terror, sem precisar que envolva qualquer tipo de ficção, mas não é o caso aqui. Antes de começar a esmiuçar a obra como ela merece, preciso deixar claro um fato: O LIVRO É DE FICÇÃO, COMPLETA FICÇÃO. Então, não leia Vozes do Joelma achando que ele irá contar fatos (reais) sobre o incêndio, reconstruindo a história, você irá se decepcionar.

O objetivo de Vozes do Joelma é construir uma narrativa lendária, falando sobre histórias que começam antes da construção do edifício e seguem até depois da recuperação deles anos depois, todas elas tratando o caso como se aquele lugar no meio da cidade mais populosa do país fosse amaldiçoado desde quando os Bandeirantes chegaram ao estado.

O livro conta com quatro contos, cada um escrito por um escritor diferente que antes recebe uma apresentação fortíssima, cheia de horror e impacto, escrita por Tiago Toy, que eu particularmente não conhecia, mas acabei ficando extremamente surpreso pela forma que escreve. O trabalho dele no livro é ligar as quatro histórias e introduzir o leitor a cada uma delas, colocando na sua escrita todo o peso do fogo, da maldição que o lugar possui e descrevendo de forma muito gráfica e detalhada o que acontece quando corpos humanos entram em contato com o fogo e quanto o calor faz feliz as entidades do mal.

Depois de uma breve apresentação de Tiago Toy, Marcos DeBrito passa a fazer as honras, apresentando seu conto que se passa antes da construção do Joelma, que explicará o porquê de aquele lugar se tornar um lugar de futuro amaldiçoado. O conto é bom, fala sobre um rapaz que não gosta da família, que por sua vez, não aprova a namorada pelo qual é apaixonado, porém é o que tem mais problemas na sua construção. São muitas idas e vindas no tempo para contar a história e isso atrapalha um pouco a leitura, por isso achei o conto mais fraco da obra. Não que eu não tenha gostado, gostei demais, mas os outros são melhores, e olha que eu sou extremamente fã de DeBrito, achando-o inclusive o grande expoente literário de horror no Brasil.

O segundo conto é escrito por Rodrigo de Oliveira. O autor, acostumado a escrever sobre hordas de zumbis, possui uma mão pesada no terror. Ele é incumbido a escrever sobre como todo fogo começou no prédio, falando um pouco sobre como a situação toda começa. O que me atraiu demais no conto de Rodrigo foi algo que já havia notado durante a leitura da série As Crônicas dos Mortos, a sua forma de descrever e ambientar cenas de ações é estupenda. A narrativa é absurda, fazendo a intensidade da obra ser imensa e deixando o leitor sem folego para acompanhar, tamanha a qualidade em que as cenas são apresentadas.

Após a obra ter um crescimento forte entre os contos de Marcos e Rodrigo, chega a vez de Marcus Barcelos, do qual li apenas um livro, Horror na Colina Darrington, o qual não gostei muito. Então eu estava com as emoções a flor da pele em ter acabado de ler dois contos ótimos, mas precisei ajustar minhas expectativas para caso não gostasse da forma de escrita do novo autor. Mas o que aconteceu foi que fui surpreendido de forma positiva pela história de Barcelos, pois ele apresenta um conto incrível, escrito de forma primorosa, mudando completamente o rumo que Rodrigo tinha aberto no conto anterior.

Como falei, a narrativa de Vozes do Joelma é construída respeitando uma cronologia, com o edifício sendo tema central, que começa com Marcus escrevendo sobre “o antes”, que vai para Rodrigo que conta a história fictícia sobre a origem do incêndio, para depois chegar a Marcus, que fala sobre a chegada dos corpos e as consequências imediatas causadas pela tragédia. Além de alterar a visão que se tem do incêndio, que tinha sido exposta por Rodrigo na sua história de forma interna, Marcus Barcelos altera o peso do livro de uma maneira primorosa, ele retira toda a ação que havia na obra e passa a escrever somente sobre terror, passando a imagem de como era impactante corpos desconhecidos chegando a cemitérios e o quanto esses corpos podem mudar a vida de quem está por ali. Este é um terror absurdo, amedrontador, daqueles que impede que você durma com medo de que tudo não seja apenas ficção.

E vejam como a literatura é fascinante e como preconceitos são abomináveis, comecei o livro tendo Marcus como o único escritor que eu não gostava e terminei ele com a certeza de que seu conto era o melhor de toda a obra, pelo seu peso, pela maneira que apresenta o terror, mas principalmente pela guinada que ela causa na obra sem deixar de se desconectar à história anterior. Isso dentro da construção de um livro de contos, de escritores diferentes, é algo extremamente difícil, mas que foi feito com extrema competência pelos autores e pela editora.

Para finalizar, a obra entrega uma história de suspense escrita pelo mestre Victor Bonini, um puta escritor de thrillers, que fala sobre o futuro do Joelma, uma ocupação irregular de pessoas sem teto que já foi tão pomposo e importante, mas que agora abriga famílias que não têm dinheiro para pagar uma moradia. Em seu conto, Victor mais uma vez muda completamente o caminho da obra, sem deixar de lado o terror, mas mudando o significado dele. Ao invés de um terror mais sobrenatural, aqui o autor explora um terror mais vivo, asqueroso, com elementos que devem causar repulsa em muita gente. Em pouco menos de 100 páginas, o autor desenvolve uma obra cheia de medo, mistério, sangue e fogo, mais uma vez levando o Joelma até as cinzas.

Além de ser responsável por essa construção maravilhosa de quatro histórias diferentes sobre um mesmo tema, preciso dizer que a Faro Editorial fez um trabalho incrível na edição da obra, com páginas pretas, capa que destaca o fogo e ilustrações extremamente perturbadoras, deixando a obra com um forte gosto de terror capaz de assombrar as noites de quem a lê.

Na minha opinião Vozes do Joelma é o um dos melhores livros de terror nacional da história, pois nunca li algo tão bem escrito. Isso também se deve ao fato de a editora privilegiar escritores nacionais e ter, talvez, o melhor time de escritores do tema, deixando fácil a tarefa de lançarem livros épicos e que vão permanecer nas memórias dos leitores durante muitos anos, bem como ainda permanece na mente dos brasileiros a  história do Edifício Joelma.

  • Vozes do Joelma
  • Autor: Marcos DeBrito, Rodrigo de Oliveira, Marcus Barcelos, Victor Bonini
  • Ano: 2019
  • Editora: Faro Editorial
  • Páginas: 288
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