Passei os quatro anos da faculdade de Letras sem pegar spoiler sobre a história de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Não sei como consegui, pois estudei outro livro do autor na época, mas ainda bem que nas matérias de Literatura Brasileira que fiz, não estudei essa obra. Caso tivesse estudado, Acho que não seria capaz de compreender a magnitude do que leria. Contudo, meu interesse pela Literatura Brasileira aumentou e minha vontade de conhecer essa obra, que eu só sabia ser incrível, apareceu. Eu não tinha pretensão de ler esse livro tão cedo, mas a Companhia das Letras me obrigou quando lançou essa nova edição.

Dito isso, eu não imaginava a grandiosidade dessa obra. Tudo nesse livro, para mim, extrapolou as expectativas. O que esperar de um livro que começa com um travessão e termina com o sinal do infinito? Um livro que nunca termina, talvez? Só posso dizer que foi uma experiência única, desafiadora e, ao final, gratificante.

Quando foi publicado em 1956, Grande Sertão: Veredas revolucionou o cânone brasileiro, e hoje é obra fundamental na Literatura Brasileira e um dos romances mais estudados da Língua Portuguesa. O que não é de admirar, pois Guimarães Rosa explora o sertão ao mesmo tempo que faz uma imersão na alma humana, usando uma linguagem única e rica.

Riobaldo, já um fazendeiro, encontra-se na companhia de um receptor, que não se manifesta no texto, relatando como foi a jornada de sua vida até aquele momento. Ele vai lembrar de sua infância, seus trabalhos, suas lutas e seus amores, contando tudo com um ar muito saudosista e entusiasmado. Então temos uma narrativa em primeira pessoa, mas não temos a voz do interlocutor. Sabemos que ele se encontra ali pela própria fala do protagonista, que chega, em alguns momentos, a responder o outro como se ele tivesse feito uma pergunta, essa da qual não temos conhecimento, precisamos descobrir o que seria pelo conteúdo da resposta do ex-jagunço.

O sertão é do tamanho do mundo.

A ideia central aqui seria a do diálogo, contudo só temos uma voz, por isso, Guimarães Rosa achou melhor não dividir o conteúdo em capítulos, há somente o travessão final, que mostra que a fala de Riobaldo começou, ela só termina no fim do livro, onde tem um símbolo de infinito. Isso significa que talvez essa história nunca termine realmente. Foi aqui que encontrei minha primeira dificuldade na leitura, a falta de uma separação em capítulos ou de tempos para pausa me deixou extremamente incomodada, nunca sabia em que momento da narrativa parar de ler e deixar a leitura para depois.

Com isso, vem a segunda dificuldade a compreensão da passagem do tempo na narrativa de Riobaldo, que vai e volta em suas histórias soltando as peças do quebra cabeça e deixando na mão do leitor o trabalho de juntá-las. Isso fica ainda mais complicado quando juntamos os dois elementos: sem capítulos + sem narração cronológica. Como é tudo relatado de uma vez só, o protagonista conta suas lembranças conforme elas vão chegando, sendo assim, no meio de um relato entre outro e mais outro, que faz relação com outro que ele já contou ou irá contar. Sim, parece meio desesperador. Confesso que as primeiras 150 páginas eu li duas vezes, até que peguei o ritmo e entendi como deveria ser meu relacionamento com essa história.

É possível identificar muitos momentos centrais da história, pois tudo vai fazendo sentido com o tempo. Há claramente um momento de exploração do sertão e de seu povo, nessa parte conseguimos ver como funciona essa realidade, por vezes tão distante de grande parte da população brasileira. Há os momentos de narrativa nos quais Riobaldo conta sua infância, juventude e o momento em que trabalha como professor. É claro que há o grande momento em que Riobaldo e Diadorim se conhecem e depois algumas situações vividas pelos dois juntos. Passando a metade do livro, quando entramos em uma guerra de jagunços, a narrativa se torna linear, deixando o entendimento do que está acontecendo mais claro. Contudo, eu precisei de muito tempo nessa parte, pois os conflitos que estão em torno da guerra e tudo que dizia respeito ao preparo da batalha final foram cansativos de ler. Mais para o final há uma explicação de como o protagonista chegou na situação em que está no momento em que começa seu relato.

Amigo pra mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado.

Preciso ainda relatar outro fator que dificultou a minha leitura, a linguagem. João Guimarães Rosa não quis somente mostrar o sertão e seu povo, ele achou que para que isso fosse feito da melhor maneira possível, deveria também introduzir a linguagem sertaneja. Por isso, a narrativa é permeada por uma linguagem popular, não convencional e cheia de irregularidades. Não há descanso para quem lê, que a todo momento precisa estar acompanhando com atenção o que Riobaldo está dizendo, pois muitas palavras estão com outros sentidos ou até mesmo internalizadas há outras (duas palavras juntas formando de uma forma muito oral uma só). Colocado isso, preciso defender o autor e dizer que há uma beleza sem igual nesse modo de relatar a história, é verdadeiro, original e por vezes poético. Há em vários trechos que emocionam pela sua beleza, principalmente aqueles em que Riobaldo narra o que sente por Diadorim. Tem um que é simplesmente tudo de mais lindo que já li na vida.

Através da fala de Riobaldo, que narra a própria vida, vamos conhecendo-no aos poucos. Sua infância, sua juventude, como se tornou professor e depois virou jagunço, até o ponto alto da narrativa, seu pacto com o diabo, tudo é narrado por ele de forma direta e crua. Muitas vezes ele não tem certeza do tempo ou dos acontecimentos. Não tem como não se apagar a esse peculiar personagem, um homem atormentado pelo amor que sente a outro homem, Diadorim. Tudo que diz respeito a Diadorim no livro se torna ponto alto na história, as melhores passagens são com ele ou sobre ele. Isso porque Riobaldo apaixona-se por Diadorim, o que faz o protagonista ficar completamente perdido e muitas vezes sem ação. Há uma explosão de sentimentos contraditórios o tempo todo, pois aqui nesse contexto uma relação homossexual entre jagunços não devia nem ser cogitada. É claro que outros personagens importantes são apresentados, como Joca Ramiro, chefe político e guerreiro; Zé Bebelo, chefe dos jagunços, constrói uma amizade interessante e cheias de respeito com Riobaldo; Hermógenes, talvez o que tem papel de vilão na história, a personificação do mal.

Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora.

Esta nova edição conta com novo estabelecimento de texto, cronologia ilustrada, indicações de leituras e alguns textos publicados sobre o romance, incluindo um breve recorte da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino e escritos de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. e Silviano Santiago. Dispostos cronologicamente, os ensaios procuram dar a ver, ao menos em parte, como se constituiu essa trama de leituras. Assinada por Alceu Chiesorin Nunes, a capa é inspirada no bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, com a reprodução de nomes dos personagens. O livro ainda conta com uma versão de luxo, que tem acabamento especial em capa dura com baixo relevo e costura aparente, e a guarda será feita de papel artesanal da Moinho Brasil, feito de cana-de-açúcar, com impressão em silk screen. Ainda há uma faixa vermelha que terá um fechamento com botão feito artesanalmente pela Quiari Marcenaria, que envolverá o exemplar. O livro será entregue em uma caixa feita de buriti por uma rede de artesãs do sertão. São apenas 63 exemplares, em comemoração aos 63 de publicação da primeira edição da obra. Eles serão numerados, tanto no bordado quanto no livro. Custa a bagatela de R$ 1190.

O melhor final de livro do mundo para quem não conhece a história está aqui, eu perdi o chão. Incrível e emocionante mesmo! Grande Sertão: Veredas é um livro que vai além do sertão, vai abordar questões filosóficas sobre Deus e o Diabo, o amor, a vida e a nossa existência. Há nesse cenário um rio que permeia toda a obra, fazendo uma referência ao ato de travessia. A vida é uma travessia e precisamos muitas vezes abandonar, mesmo que com medo, os velhos caminhos que nos levam aos mesmos lugares e fazer uma nova travessia, para não ficarmos para sempre à margem de nós mesmos. Foi uma leitura densa, complicada e difícil, mas que mexeu muito comigo. Uma leitura que vou levar pra sempre comigo. Mesmo com todas as dificuldades que passei e que foram superadas durante toda a leitura só posso rasgar elogios a tudo que foi construído pelo autor e ao modo como ele resolveu contar essa história, não é a toa que esse livro é considerado um clássico. Quero reler essa obra no futuro, pois tenho certeza que ainda tenho muito o que aprender com ela.

  • Grande Sertão: Veredas
  • Autor: João Guimarães Rosa
  • Ano: 2019
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 552
  • Amazon

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