A humanidade sempre apresentou uma tendência curiosa pelo fascínio cego. Sempre admirou o brilho das coisas, as maneiras com que prometiam facilidades, as formas com que pareciam nos encaminhar para os limites de um futuro promissor A humanidade sempre apresentou uma tendência curiosa pela ignorância consciente. Sempre ousou percorrer caminhos duvidosos, reconhecendo as possibilidades de encontrar-se em cenários contrários àqueles que aspirava, compreendendo os aspectos negativos de suas escolhas e, ainda assim, arriscando os limites de seu futuro promissor.

Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo.

Apesar de nossos polegares opositores, raciocínio lógico, lobo frontal desenvolvido e consciência peculiarmente distanciada do meio natural, admiramos o fogo que nos aquece e que destrói florestas, residências e vidas. Nos encantamos com as cores, movimento, drama e explosões de espetáculos cinematográficos e nos esquecemos de olhar pela janela, para o mundo que se consome em dramas torturantes, cenários maravilhosos, escolhas questionáveis e infinitas possibilidades. Convivemos com pequenas caixas que aspiram nosso chão, transmitem histórias fictícias, abrem nossas cortinas, gravam nossos dias, fotografam nossas imagens, conversam conosco e realizam pequenas atividades. Enquanto isso, perseguimos o diferente, assassinamos comunidades, destruímos o meio ambiente, transformamos rios em veneno, crianças em pequenos seres preconceituosos, animais em objetos, objetos em animais.

Em nossa admiração e fascínio pelos produtos da ciência e tecnologia, em nossa produção e ampliação das culturas de massa e de mídia, em nosso encantamento por produções cinematográficas e grandes espetáculos, acabamos por nos acomodar. Permitimos que nossas paredes se transformassem em grandes telas de televisão. Voltamos nossa atenção para as grandes produções, para os seriados escandalosos, para os dramas insensíveis, para os espetáculos explosivos. Permitimos que aparelhos, máquinas e caixas reluzentes adentrassem nossas residências. Encantados com suas facilidades, com suas promessas de economia de tempo, com seus pacotes repletos de brilho e sonhos bons, adicionamos outro produto à lista de desejos. Permitimos que nossa mente entrasse em coma profundo, que nossa curiosidade fosse podada, que nossa inerente necessidade de questionar fosse abandonada, que nossa criatividade entrasse em colapso.

Contrariando todo tipo de sorte ou destino, ignorando os mais sinceros alertas e avançando corajosamente por entre os limites da ficção e realidade, construímos uma nova sociedade. O governo, não acreditando neste belíssimo contexto, apenas aproveitou os bons ventos. Os grupos engravatados no poder, angustiados com suas infrutíferas perseguições às minorias e cansados de elaborar campanhas de caça às bruxas, garantiu que o curso dos acontecimentos permanecesse em movimento. Não precisamos de um governo totalitário e sua elite dominante para nos aprisionar em encantadoras e tecnológicas residências à prova de fogo. Fizemos isso por e com nós mesmos!

Uma vez que a criatividade, curiosidade, questionamento e criticidade tornaram-se características sem valor, além de potencialmente perigosas para um exemplar decente da comunidade humana, abriram-se as portas para a implantação de processos de alienação. Da mesma forma, foram perseguidos e destruídos qualquer receptáculo de conhecimento, qualquer ser, instrumento ou elemento capaz de instigar o pensamento, a consciência, a criticidade de uma sociedade parcialmente adormecida. Foi por meio deste percurso tortuoso que os bombeiros deixaram de salvar vidas e apagar incêndios. Foram nossas escolhas, nosso silêncio e comodidade que alinharam os planetas para que o corpo de bombeiros se transformasse em uma organização que queima livros e liquida pessoas.

Fahrenheit 451, livro publicado por Ray Bradbury em 1953, em essência, é cada uma das palavras, reflexões, pensamentos e parágrafos que expressei até o momento. Sua história aproxima o leitor de um futuro ameaçador, de uma distopia sombria, de uma ficção científica peculiarmente condizente com os contextos vigentes na atualidade. Sua narrativa direciona o leitor por entre debates, críticas e conjecturas acerca da sociedade, dos sistemas e instituições que a delimitam, das regras e concepções que a organizam, das maneiras que agimos enquanto comunidade e indivíduos.

O livro expõe a jornada de um protagonista que se descobre protagonista de sua própria história. Apresenta o processo de tomada de consciência de um personagem fictício que, curiosamente, poderia ser real. Por meio de suas metáforas, alegorias e profundidade, ele ousa olhar para o mundo, através da janela, para os poros da vida que segue a um passo de distância. Com sua escrita peculiar, por vezes poética, ele constrói uma sociedade fictícia que, curiosamente, assemelha-se à sociedade e aos contextos de nossa própria realidade. Ele nos assombra por ser verdadeiro em suas palavras, duro em suas críticas, pesaroso em suas previsões e cruel em suas consequências.

Fahrenheit 451 é a temperatura necessária para que o papel entre em processo de combustão. Fahrenheit 451 é o título de um livro cuja narrativa demonstra bombeiros queimando livros. Trata-se de um clássico da literatura de ficção científica distópica do século XX. Trata-se, também, de uma análise crítica, talvez até mesmo um ensaio acerca dos vícios, escolhas, desafios e direcionamentos de uma sociedade verídica. Fahrenheit 451 é uma história sobre livros, fogo, aranhas metálicas assassinas, entretenimento, velhos assustados, consciência, indivíduos corajosos e resistência. Trata-se de uma das obras preferidas da pessoa que vos fala. Trata-se, também, de uma indicação de leitura pertinente, necessária e, considerando todos os eventos presenciados ao longo deste ano, mas também ao longo de toda a trajetória da humanidade, eleva-se, uma vez mais, como uma leitura urgente.

  • Fahrenheit 451
  • Autor: Ray Bradbury
  • Tradução: Cid Knipel
  • Ano: 2012
  • Editora: Biblioteca Azul
  • Páginas: 215
  • Amazon

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