Leitores são seres extraordinários! Suas essências ou princípios podem discordar profundamente sobre as trajetórias e escolhas humanas contemporâneas. Seus vastos conhecimentos linguísticos podem elaborar teses acerca da correta utilização de termos como “bolacha” e “biscoito”. Suas percepções de mundo, alteradas e ampliadas pelo atento e curioso ato da leitura, oferecem um arsenal de embasamento e teorias científicas, fictícias, mitológicas, apto a promover acalorados debates que, e todos sabemos, facilmente se propagariam por dias e dias. Leitores são seres semelhantes em suas diferenças e diferentes em suas semelhanças. São ferrenhos defensores de suas interpretações literárias, chamas constantes nos movimentos de transformação do mundo e, ao mesmo tempo, verdadeiros românticos apaixonados por suas obras preferidas, percorrendo solitários caminhos em busca de outros leitores tão encantados, admirados, entusiasmados por esse universo quanto eles mesmos!

“O que é certo é que o ato de ler, que resgata tantas vozes no passado, preserva-a às vezes muito adiante no futuro, onde talvez possamos usá-las de forma corajosa e inesperada.”

Todo leitor, consciente ou inconscientemente, se transporta e transforma através do encanto promovido pelas obras que lê. Todo leitor valoriza a complexidade e extensão das habilidades exercitadas no momento da leitura, reconhecendo algo que segue além do entretenimento, além do oferecimento de momentos de descanso para o corpo e a mente pois compreendem nela a possibilidade de mudança em si, na realidade e no universo que os cerca.

Poucos destes seres extraordinários, contudo, refletem acerca do momento em que a escrita abandonou o plano das ideias e se fundamentou, enquanto elemento intrínseco, nos direcionamentos da história humana. Poucos leitores e amantes dos livros se deixaram perder por entre os peculiares segredos da história da leitura, desvendando os mistérios dos antigos livros em rolo, sendo assombrados pelas incandescentes fogueiras e indivíduos que atiravam livros e mais livros em seu desolado centro. Da mesma maneira, poucos de nós encontraram oportunidade, motivação ou mesmo indicações de livros que abordem essa habilidade, característica … diria tratar-se de um verdadeiro presente, que carregamos em nós mesmos, que exercitamos a todo momento e que, com um mínimo de cuidado, carinho e esforço, modifica a vida de qualquer um.

Essencialmente, incorrigivelmente, irrevogavelmente apaixonada pela leitura, por livros e obras em seus mais variados formatos, conteúdos e direcionamentos, encontrei em Alberto Manguel um mestre professor, um semelhante na defesa da leitura, um verdadeiro contador de histórias. Com escrita leve, acessível, reflexiva e adoravelmente semelhante às mais queridas narrativas de ficção, que nos transportam por mundos distantes e repletos de segredos, o escritor retorna para os primórdios da escrita, para os detalhes, nuances e mudanças promovidas pela leitura. Da antiguidade para a Idade Média, da Idade Média para o surgimento da imprensa, do surgimento da imprensa para a proibição do acesso de classes sociais ou grupos “minoritários” à escrita e leitura. Da proibição da leitura à destruição de livros considerados impróprios, polêmicos, verdadeiras afrontas ao pensamento da sociedade de bem, Alberto Manguel demonstra nossa história, expressa os desafios que superamos, os preconceitos que, ainda na contemporaneidade, lutamos para erradicar, ressalta nossos equívocos e potencialidades, oferece a oportunidade para que mais e mais leitores conheçam e compreendam a trajetória que os fundamentou como tais, no espaço tempo do presente, enquanto seres críticos, reflexivos, apaixonados e afetivos.

Uma História da Leitura direciona novos leitores, na mesma medida em que relembra aqueles cujos percursos possibilitaram maior contato com esse peculiar, encantador e maravilhosamente perturbador universo, de que no fim, livro, leitores e escritores se transformam em um único elemento. Escritores observam o mundo a fim de construir suas narrativas, tecer suas teorias, encontrar seus campos de pesquisa e reflexão. Ao interiorizarem, ressignificando as palavras dispostas em longo de páginas e páginas de um frágil material, leitores se transformam em livros, carregando em seu intimo todas as obras lidas, todas as mensagens transmitidas, todos os sentimentos e interpretações que, dispostos novamente na realidade do mundo em que vivemos, o transforma.

A sua maneira, Alberto Manguel e sua Uma História da Leitura nos relembram de que são o mundo tanto quanto são todos os livros que leram, as horas que passaram juntamente às palavras de homens e mulheres que, talvez, nunca venhamos a conhecer e que, talvez, tenham sido outros homens e mulheres que, na atualidade de nossas vivências e experiências, tanto admiramos. Esses escritores, também leitores, esses seres transformados em páginas, capas e palavras, vivem e revivem na medida em que trilhamos nossas jornadas, finalizamos novas leituras, carregamos e transmitimos aquelas narrativas, teorias, mensagens, reflexões e ensinamentos à nossa própria maneira. Pois, para além da construção de uma consciência crítica, da apresentação de novos e maravilhosos mundos, do exercício da empatia e simpatia entre leitor, personagem e histórias, a magia da leitura está na maneira única com que permite nos transformar em novas versões de nós mesmos enquanto mantemos vivas as vozes e os pensamentos de leitores que vieram antes de nós.

Com as derradeiras últimas páginas se aproximando, Alberto Manguel nos recorda ser a leitura uma força única, que requer poucas palavras iniciais para se tornar algo irresistível. Complementando tal posicionamento, diria ainda que todos e cada um de nós, enquanto intrinsecamente humanos, fundamentados pelos mesmos semelhantes e diversificados percursos históricos maravilhosamente turbulentos, peculiarmente encantadores e assombrosamente únicos, possuímos as habilidades necessárias para se deixar afetar – retomando o sentido de afetos – pela leitura do mundo, da realidade, dos livros. Muitas vezes, somente ainda não encontramos a obra certa, o escritor correto, a construção devidamente alinhada a fim de nos lançar por entre os limites de novos mundos.

Da mesma maneira, é possível que a motivação, tendência, chamado ou conceito específico que deseje utilizar, ainda não tenha nascido no coração de diversos leitores e, talvez nunca venha a nascer, porém, Uma História da Leitura segue demonstrando seu encantamento, apreço e respeito por esse universo. Suas reflexões e saberes seguem aproximando estes seres extraordinários em seus caminhos solitários para que, de infinitas maneiras, mantenham vivas tantas e tantas vozes!

  • A History of Reading
  • Autor: Alberto Manguel
  • Tradução: Pedro Maia Soares
  • Ano: 2021
  • Editora: Companhia de Bolso
  • Páginas: 432
  • Amazon

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