Em setembro de 2021 publicamos no Estante Diagonal minha resenha de A Metade Perdida, lançamento da Intrínseca escrito por Brittany Bennett. Por meio de uma narrativa intrincada, surpreendentemente equilibrada na observação das trajetórias de personagens que poderiam, neste mesmo momento, localizar-se ao nosso lado, a escritora interliga, naquele livro, as vivências de uma infinidade de membros da comunidade negra norte americana aos eventos de uma ficção cuja inspiração encontra-se inegavelmente nos limites do mundo real. Pertinente em todos os assuntos e temáticas aos quais se dispõem a abordar, a autora me conquistou com sua escrita direta, equilibradamente detalhada, encantadoramente distanciada de mirabolantes voltas e reviravoltas.

“Ah, sim, conhecemos o amor mínimo. Aquele finzinho de mel esquecido no fundo do pote, que mantém a doçura na boca por tempo suficiente para nos fazer esquecer a fome. Todas já passamos a língua pelos dentes para saborear esse último bocadinho o máximo possível, e, em toda a nossa vida, nada nos fez mais famintas.”

A Metade Perdida me transformou enquanto leitora e sujeito humano, me possibilitou entender que os amplos debates sobre temáticas contemporâneas dificilmente ilustram as particularidades existentes em cada contexto, vivenciados por indivíduos pertencentes aos mais diversos pontos espaço temporais. A Metade Perdida garantiu a permanência do interesse pela escrita e narrativas construídas pela escritora, contudo, não conquistou um coração que necessita sentir alguma espécie de conexão com toda e cada história que acompanha. E foi neste aspecto que As Mães, publicado no Brasil em 2017, acertou, ultrapassando todas as expectativas que tive no momento de iniciar a leitura!

Narrado por este grupo de mulheres cujas vivências compreendem as mais belas alegrias, delicadas memórias e cruéis dores da vida. Cujos olhos observam a ascensão e queda de amores impossíveis, trajetórias amaldiçoadas e promessas vazias. Cujos ensinamentos e mensagens tão sabiamente deveríamos absorver, acompanhamos as formas peculiares como os eventos e personagens que, ao cruzarem a linha da vida de Nadia Turner, influenciarão sutil ou drasticamente as consequências de suas escolhas.

Confira a resenha de A Metade Perdida

Adolescente com futuro promissor, filha de ex-combatente do exército, a garota é assombrada pelo suicídio da mãe. A mulher que lhe deu a vida, desistindo de um futuro de estudos e possibilidades, que fora abandonada pela família no momento em que descobrem sua gravidez, com muito esforço se encontra na conservadora comunidade evangélica da igreja Upper Room. Mas a vida, como tão bem Brit Bennett retrata, não se contenta em percorrer retos caminhos e, após anos de distância, cuidado e lutas, a mãe abre um rombo no coração de Nadia. É desta maneira que a protagonista se perde pelo caminho, se apaixonando por Luke Sheppard, filho do pastor da Upper Room.

Após sofrer uma lesão na perna, eliminando suas chances de conquistar uma bolsa de estudos e jogar profissionalmente pelo time da universidade, o protegido filho único transforma-se em encrenqueiro. O acesso a exemplos de carne e osso, bem como a aconselhamento e conhecimento, pouco interferem nas escolhas inconsequentes do mimado menino, quem se direciona por caminhos questionáveis, promovendo confusões cujos preocupados e atenciosos pais carinhosamente buscam encobrir ou solucionar. Quando o suposto amor de Luke por Nadia delineia o surgimento de um futuro inconstante e perigoso, manifestadamente opressor, urgentes decisões devem ser tomadas.

É deste modo que a duologia de valores tão delicadamente camuflada por entre os domínios da conservadora Upper Room aparece como pequenas rachaduras. Que as máscaras e fachadas do silencioso e reflexivo pastor, bem como de sua respeitável esposa Latrice, abalam a certeza de toda uma congregação. E, por fim, é desta maneira que percebemos, como nas caóticas e intrincadas trajetórias da vida, que as escolhas que realizamos possuem o poder de nos assombrar por toda nossa trajetória, moldando nossos percursos e culminando em momentos tais que muito se assemelham a uma peculiar e irônica materialização do destino.

Narrado pelas Mães, um grupo de senhoras que muito vivenciaram, muito sofreram, muito amaram e muito aprenderam com os desafios impostos por suas trajetórias de vida, mas, sábias e observadoras como são, pelos desafios, escolhas e consequências das trajetórias de vida de todos aqueles que as cercam, o livro trata-se de uma materialização em prosa da observação de momentos pertencentes aos passados, presentes e futuros de pessoas com as quais dividimos períodos de nossa história. As Mães é um olhar direto, por vezes fragmentado e doloroso, por vezes extenso e duvidoso, dos momentos vivenciados por personagens que não nós mesmos. É uma observação atenta do pouco ou muito que conhecemos e compreendemos da vida do outro e como, ainda que esforços enormes se efetivem, torna-se desafiante manter-se na neutralidade, afastar-se de julgamentos e acompanhar a vida do outro como o outro a vivencia.

Brit Bennett, com sua simpatia, compreensão e empatia, com seu talento literário inegável, com seu olhar para as peculiaridades da vivência de cada personagem, que poderiam e definitivamente existem nos domínios da realidade, demonstra acontecimentos, consequências, sentimentos e momentos que transformam nossos olhares, nossos pensamentos, nossas verdades acerca de assuntos ou temáticas dos quais tão ingenuamente tínhamos certeza. Sua narrativa complementa pensamentos, evoluí opiniões, amplia discussões. Seus personagens expressam trajetórias de vida que, tantas e tantas vezes, permaneceram excluídos, afastados do foco e olhares da criação literária.

E, como sugere o título, por entre todo e cada personagem, todo e cada capítulo, todos os detalhes da narrativa, e todas as pertinentes temáticas abordadas, encontramos uma reflexão acerca daquilo que nos define enquanto mães. Embora as interpretações apresentem-se infinitas, pois infinitos são os leitores e suas experiências, suas leituras e posicionamentos, nos enxergamos ou enxergamos outras em As Mães. Somos as mães que perderam batalhas, aquelas que não se encontram mais ao nosso lado para amenizar as dores da vida. Somos as mães presentes, que protegem seus filhos com todas as forças restantes em nossos corpos. Somos as mães distantes, as mães que se transformaram por opção, necessidade, vocação ou inesperadas reviravoltas do destino. Somos as mães sem filhos, que se preocupam, que sentem na pele a tristeza e a alegria de nossos não filhos. Somos as mães que optaram por não ser mães, que efetivaram as mais desafiantes escolhas, que percorreram caminhos inimagináveis.

As Mães não é um livro sobre maternidade, embora o questionamento e a reflexão acerca da verdadeira essência daquilo que compreendemos como e enquanto “mães” permeie a construção de toda a narrativa. As Mães é um livro sobre meninas, garotas, mulheres de todas as idades e vivências, provenientes dos mais diversificados contextos e realidades. Trata-se de um livro sobre as consequências de nossas escolhas e as maneiras como moldam nossos caminhos.

Trata-se de uma observação sincera, direta, compreensiva e encantadora da vida. Livre de julgamentos e questionamentos, o livro nos ensina o valor do distanciamento quando da percepção do outro, do conhecimento do outro, do mais humano ato de enxergar e respeitar o outro. Como em A Metade Perdida, finalizamos a leitura transformados, nos encontrando um pouquinho mais leves e um pouquinho mais pesados, percebendo mudanças sutis ou profundas em nossos posicionamentos … mas, definitivamente, comovidos pelos trechos e momentos das histórias destes seres ficcionais que tão encantadoramente existem na realidade.

  • The Mothers
  • Autor: Brittany Bennett
  • Tradução: Carolina Carvalho
  • Ano: 2017
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 256
  • Amazon

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