Esteja preparado caro leitor! O terceiro volume das crônicas é como um banquete onde todas as iguarias mais cobiçadas pelos grandes chefs encontram-se presentes de forma mais intensa, mais lustrosa e muito mais sedutora.

A cada página virada deste tomo, não só o apelo pelo sangue mortal, como especialmente o dom das trevas e a erotização do sobrenatural irá incomodá-lo ou fisgá-lo de vez; independente de qual venha a ser o seu caso, uma coisa é certa: você não conseguirá parar de ler e quando o fizer apenas no derradeiro “the end”, ansiará por mais.

Antes de guia-lo nesta jornada, primeiro devo ressaltar a nova e luxuosa edição da editora Rocco que, além da já familiar capa dura com textura emborrachada, utilizada nos dois volumes anteriores, conta com ilustração minimalista – perfeitamente condizente com a trama e que me fez recordar dos meus dias enamorados pelo Egito Antigo – os destaques em dourado metalizado, fitilho vermelho, guardas negras como a noite e páginas amareladas que tornam a leitura mais confortável, trouxe em cada parte da história – cinco no total – um trecho de poema do marido da autora, Stan Rice, falecido em 2002. Infelizmente Anne também partiu deste mundo em dezembro de 2021, mas deixou para nós ávidos leitores e entusiastas pelo místico, um legado significativo repleto de bruxas, fantasmas, espíritos, anjos, demônios e, obviamente, vampiros.

Algumas coisas iluminam o cair da noite e pintam de um sofrimento um Rembrandt. Mas, em geral, a rapidez do tempo é uma piada, à nossa custa. A mariposa é incapaz de rir. Que sorte. Os mitos estão mortos.  – Stan Rice

Sem mais delongas, A Rainha dos Condenados se estende diante do leitor feito um leque de inúmeras facetas enquanto a autora magistralmente acrescenta uma nova e intrigante leva de personagens narradores que nos magnetiza com suas variadas formas de expressar determinados momentos de suas vidas e não vidas – particularmente, me vi fascinada com o surgimento de Khayman e atraída pela misteriosa Lenda das Gêmeas Maharet e Mekare, duas beldades ruivas de olhos verdes cuja trágica história, em forma de sonho, invade a consciência de todos os protagonistas aqui retratados – além de novos elementos que elevaram o nível d’As Crônicas Vampirescas para outro patamar, como A Grande Família e a Talamasca – uma espécie de agência de detetives paranormais que registra eventos e seres sobrenaturais pelo mundo ao longo dos séculos.

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Neste volume Rice usa e abusa do obscuro, tornando um deleite mergulhar nas páginas que praticamente transpiram. Mas, é com o contar da verdadeira história de como os vampiros vieram a surgir, há mais de seis mil anos, nos confins do Egito Antigo, porque eles têm essa insaciável sede pelo néctar vermelho, poderes únicos que o conde Drácula sonharia possuir, que a autora realmente cativou a atenção desta que vos fala. Porém, nem tudo são rosas e por vezes me feri com os espinhos traiçoeiros entre as pétalas e por mais vezes ainda senti a insistente vontade de largar numa mesinha este tomo que me incomodou ainda mais que seu antecessor O Vampiro Lestat. No entanto, como costuma acontecer em casos assim, a curiosidade falou mais alto e eu raramente venho a abandonar algo quando iniciado.

Publicado em 1988, o livro inicia com o caos deixado por Lestat em sua egocêntrica tentativa de ser o “todo poderoso e roqueiro” vampiro, o terceiro volume d’As Crônicas – que ganhou uma adaptação em 2002, dirigido pelo australiano Michael Rymer, com roteiro de Scott Abbott e Michael Petroni, com Stuart Townsend ocupando o lugar de Tom Cruise como Lestat e Aaliyah como a toda poderosa que dá nome à obra; com elementos de O Vampiro Lestat mesclados à trama, além das já costumeiras liberdades criativas… por muitos motivos, o filme acabou se tornando um fracasso cinematográfico, especialmente se comparado ao brilhantemente produzido Entrevista com o Vampiro – traz o verdadeiro caos e inferno na Terra quando Akasha, a Mãe, a primeira dos sugadores de sangue, uma Daqueles que Devem ser Preservados, a mais cruel dos seres da noite se vê desperta graças as canções intoxicantes e confessórias de Lestat.

Pois nela sempre houvera um lugar escuro e cheio de desespero. E uma grande força que a impulsionava a criar sempre um sentido qualquer, porque não havia sentido algum.

É difícil embarcar em uma leitura como a desta série vampiresca e não se ver contagiado, intimidado e até incomodado com diversas das atitudes e pensamentos dos personagens primorosamente construídos por sua autora – e por sinal, desconheço outro escritor com tamanha expertise. Aqui, mais que nos dois volumes anteriores, toda a matança é justificada por delírios de poder e sonhos distorcidos; especialmente por Akasha que buscava a paz mundial se baseando no fato de que apenas homens guerreavam, apenas homens possuíam a semente do mal intrínseca em seu cerne – uma visão feminista e tirânica que pode muito bem ser comparada à outros discursos de limpeza promovidos por figuras ditatoriais no nosso mundo – e que as mulheres deveriam tomar as rédeas – enfeitiçadas pela Rainha, é claro, porque como todo “bom ditador” não há espaço para livre arbítrio – dessa purificação… mas, antes dela grande parte, se não todos, os filhos da escuridão buscavam justificar seus abates, a escala e a forma escolhida para tal feito que variava.

Conflitos morais a parte, além dos novos, porém velhíssimos, rostos presentes em A Rainha dos Condenados o leitor outra vez mais se verá na presença de nomes conhecidos como Armand – o angelical vampiro adolescente do Teatro dos Vampiros de Paris – Marius – o romano cuidador do Pai e da Mãe, Rei e Rainha, Enkil e AkashaGabrielle, Louis e Daniel – o humano repórter de Entrevista, agora pupilo do vampiro Armand. Ao finalizar esta leitura de duas coisas tive certeza absoluta: uma delas é que este livro certamente funciona como uma espécie de base, ou linha divisória, das histórias narradas nos demais livros da série; a segunda é, ainda que o erotismo, a complexa violência e, por vezes, os caminhos profanos singrados pelos personagens me incomodem pessoalmente, cedo ou tarde minha curiosidade irá vencer e voltarei às Crônicas para saciar esta sede e vislumbrar tudo o mais que miss Rice há tanto tempo idealizou para nós leitores que, timidamente ou não, flertamos com a escuridão.

Eu queria ser um símbolo do mal num século brilhante que não tinha espaço para o mal literal que eu sou (…) agora está tudo acabado – tudo o que aconteceu depois. Sobrevivi, obviamente. Senão não estaria falando com vocês. E a poeira cósmica finalmente assentou; e o pequeno rasgão no tecido das crenças racionais foi consertado, ou pelo menos fechado.

  • The Queen of the Damned
  • Autor: Anne Rice
  • Tradução: Eliana Sabino
  • Ano: 2021
  • Editora: Editora Rocco
  • Páginas: 496
  • Amazon

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