Ao longo de minha trajetória como leitora, nunca encontrei uma alma literária que me surpreendesse e permitisse refletir criticamente a racionalmente insana sociedade humana, tanto quanto Margaret Atwood. Dentre uma infinidade de escritoras talentosas, criadoras de narrativas tão diversificadas quanto sempre foram as produções artísticas, teóricas, científicas e literárias oferecidas por mulheres, é Margaret Atwood quem, gentil e assustadoramente, solicita meu retorno à sua obra, proporcionando uma sucessão de leituras que, na mesma medida, alinham-se às minhas preferências de escrita e estilos literários enquanto me impulsionam por caminhos que direcionam para além do esperado ou imaginado.

“Mas eu me coloco em suas mãos. Que outra escolha me resta? Quando você estiver lendo esta última página, se eu estiver em algum lugar, será aqui.”

Como tantas e tantos outros antes e depois dela, Margaret Atwood é uma escritora que, nos limites de minha mente caótica, se assemelha a um mestre da palavra, que ensina por meio de densos e complexos percursos literários que, necessariamente, devem ser questionados, refletidos a fim de constituírem alguma mudança nas perspectivas políticas, socioculturais do leitor. Embora seus livros possam entreter, acompanhando pessoas infinitas em seus finitos períodos de dedicação à leitura, defendo com todas as forças de meu ser que o entretenimento nunca foi e nunca será o objetivo de sua obra.

Por meio de uma diversidade de gêneros, estratégias e estilos de escrita que carregam suas características e elementos essenciais, Margaret Atwood constrói narrativas que refletem e questionam as sociedades humanas; o machismo e patriarcado; os peculiares e infinitos movimentos de perseguição e violência contra a mulher; as ações e empreendimento científico tecnológicos; a imprevisibilidade na compreensão de cenários futuros e as consequências negativas de uma sociedade de consumo pautada na crença e promessas vazias de grandes empresários, políticos e pesquisadores. Suas temáticas, reflexões e questionamentos são tão amplos, complexos e pertinentes quanto sua obra. E enquanto mestre dessa resenhista, pesquisadora cansada, estudiosa ansiosa e leitora que vos fala, acabou por demonstrar, também, novas maneiras de abordar uma mesma história.

É por todos os motivos citados – e todos aqueles que não considerei necessário destacar -, que afirmo ser essa outra daquelas resenhas expressivamente assinadas por quem a escreve. Assim, estejam preparados para uma resenha que tensiona para a construção de um texto que exige tanto daquele que lê, quanto daquele que escreve, visando sempre demonstrar a grandeza, complexidade, criticidade e criatividade de uma narrativa que proporciona as mesmas – semelhantes – experiências de leitura para aqueles que se debruçam sobre suas 526 páginas!


O Assassino Cego é um personagem inacabado e ficcional, delineado por objetivos, tendências e humores específicos de um escritor que relata os contextos de uma sociedade alienígena, espacial e temporalmente consolidada no planeta Zicron. Sua trajetória é definida na medida em que, ao constantemente alterar seus esconderijos por sofrer perseguição de forças político econômicas (?) incompreensíveis, o misterioso escritor se encontra com uma jovem proveniente de família abastada que, por sua vez, experiencia a emoção de um romance secreto enquanto mantém a estabilidade proveniente de um casamento arranjado.

Neste sentido, o primeiro assassino cego do livro escrito por Margaret Atwood se apresenta como um jovem explorado desde tenra infância, abusado por aqueles que deveriam prezar por sua dignidade, segurança e desenvolvimento pleno enquanto sujeito e cidadão. O assassino sem nome, cegado pelo trabalho minucioso e atento que realizava na produção de tapeçarias, curiosamente se transforma naquele que pode definir os cursos sociais, político e econômicos da sociedade em que vive. Contudo, seu destino nunca é revelado, uma vez que o misterioso escritor ficcional e a jovem apaixonada têm seus destinos confinados às páginas fictícias de outra história … a história de O Assassino Cego, livro escrito, publicado e existente dentro do romance escrito e publicado por Margaret Atwood.

O Assassino Cego foi escrito por Laura Chase e publicado postumamente por sua irmã mais velha, Iris Chase Griffen. Provenientes de uma família abastada que entra em declínio por meio de frágeis e arriscadas estratégias empresariais que levaram em consideração princípios teórico filosóficos em detrimento de direcionamentos político econômicos, as irmãs crescem aquecidas e bem alimentadas, distanciadas de todo e qualquer convívio comunitário, além de permanecerem protegidas dos piores desafios definidos pelo contexto histórico social do início do século XX.

Na medida em que o mundo se expandia, a sociedade se transformava e as meninas cresciam, os traumas carregados pelo pai, provenientes de sua luta na guerra, e o subsequente falecimento da mãe – possível vítima de violência sexual e desconhecida doença proveniente de abortos espontâneos-, auxiliam no alheamento de Laura e Iris, possibilitando que a irmã mais velha amadurecesse sem adquirir habilidades necessárias para compreender as nuances e objetivos escusos da alta sociedade, enquanto Laura, não somente consolidasse visões de mundo peculiarmente questionadoras e restritivas, como também se apresentasse como alvo de olhares e intenções duvidosas.

Assim, chegamos ao último nível narrativo estabelecido por O Assassino Cego, uma vez que é Iris Chase Griffen quem, por meio de relatos de vivências cotidianas fundamentadas no presente, observa o passado a fim de demonstrar ao leitor as maneiras como a trajetória de sua família, e os interesses de personalidades – em sua maioria homens brancos, heterossexuais e provenientes de contextos abastados -, possibilitaram a consolidação das dores, traumas e desafios enfrentados pelas irmãs Chase.

Por entre 526 páginas de uma narrativa complexa e habilmente construída, demarcada por uma escrita misteriosamente intrincada, trilhamos um caminho de reconstrução de uma história ficcional que se desenvolve por meio de recortes de jornais; informações pontuais acerca do presente; relatos, vivências e questionamentos sobre o passado, escancarado ou insinuado, das personagens principais; trechos do livro escrito por Laura Chase e, coroando a árdua e encantadora experiência de reconstrução, por meio de passagens que relatam os desafios e desventuras do “verdadeiro” assassino cego.

O Assassino Cego, deste modo, se transforma em uma verdadeira colcha de retalhos, sendo Iris Chase Griffen a costureira quem, com curiosa habilidade narrativa e verdadeira proximidade com o relato pessoal que divaga por entre nuances e detalhes nem sempre elementares, oferece ao leitor a oportunidade de desvendar a verdade por trás da história. Por esse motivo, afirmo ser o livro tão embasado na realidade do leitor quanto qualquer processo de pesquisa histórico biográfico, uma vez que dependemos das memórias, interesses e conhecimento de uma senhora para completar um quadro que direciona para diversos caminhos possíveis!

Embora o processo de construção narrativa, o estilo de escrita e as maneiras como Margaret Atwood se aproveita das nuances interpretativas que somente acontecimentos relatados no plano real da comunicação discursiva possuem, são os questionamentos e reflexões sociais, principalmente voltados à posição da mulher, que encantaram e surpreenderam a leitora que vos fala. Isso pois, ao contrário de outros livros da escritora, aqui observamos uma exposição de costumes, violências, institucionalizações e posicionamentos peculiarmente escancarados, na mesma medida em que se encontram velados por uma sucessão de figuras masculinas que, para o bem ou para o mal, reproduzem em níveis dispares o machismo e patriarcado social do início do século XX.

Seja no alheamento e distanciamento do convívio comunitário, na suposição de que meninas não se demonstram capazes de aprender determinadas temáticas ou ainda, na certeza de que seus interesses são restritos e previsíveis, o livro delineia, por meio de uma veracidade assustadora, as perspectivas e moldes aos quais se obrigam a encaixar garotinhas desde o nascimento. Se pensamos, contudo, no fato de que uma infinidade de sujeitos percebe ou conhece as violências vivenciadas por mulheres ao longo de todas as suas vidas e que nada, efetivamente, é realizado a fim de se modificarem estruturas sociais, pensamentos hegemônicos e fundamentos institucionais, então a narrativa de ficção adquire contornos tão cruéis e reais quanto a própria realidade.

Por fim, caso a leitura de O Assassino Cego lhe direcione para o surgimento de incertezas acerca de todos os traumas, situações e violências insinuadas, se permita questionar se a incredulidade que está sentindo não reflete um machismo estrutural assimilado por você, caro leitor, após anos e anos de convivência e aprendizado no seio de uma sociedade falha. Da mesma maneira, ouse observar casos reais de violência contra a mulher e a maneira como diferentes elementos da sociedade os invisibilizam ou invalidam, promovendo uma interpretação acerca de se a estratégia de O Assassino Cego – e aqui o título se transforma em algo escancaradamente sugestivo – não está apenas reproduzindo contextos reais. A reflexões, interpretações e conclusões as quais você chegar, uma vez finalizada a leitura, indicarão seu lado na luta feminista… espero que se encontre do lado correto.

  • The Blind Assassin
  • Autor: Margaret Atwood
  • Tradução: Léa Viveiros de Castro
  • Ano: 2021
  • Editora: Rocco
  • Páginas: 526
  • Amazon

rela
ciona
dos