Poucas obras carregam o peso histórico e emocional de O Diário de Anne Frank ou, mais especificamente, Querida Kitty. Apesar de me interessar e consumir bastante literatura que envolve a Segunda Guerra – da perspectiva bélica, espiã ou de suas vítimas e sobreviventes – este é aquele tipo de leitura que criará um nó na garganta, devido ao delicado e trágico tema que aborda.

Contudo, acredito ser extremamente necessário que nós leitores e leitoras, seres empáticos que somos, mergulhemos ocasionalmente nesse tipo de livro cuja história foi dolorosamente real para uma jovenzinha de treze anos que teve seus sonhos arrancados pelas garras nefastas de Hitler e seus asseclas.

Mas não se desespere, caro leitor! Até mesmo no meio da tempestade a calmaria tende a espantar as mazelas e a forma como Anne Frank permaneceu fiel a si mesma, observando as coisas pelo prisma da infância, me fez crer que até no pior dos momentos somos nós que realmente detemos a chave para a paz.

Não adianta nada, nem para nós, nem para os que estão lá fora, continuarmos tristes, como estamos neste momento. Que sentido faria transformar a Casa dos Fundos numa Casa Melancólica?

Há alguns anos tive a experiência de ler O Diário de Anne Frank e, como todas as pessoas que o fizeram, a história dessa garota judia me emocionou intensamente. Mas, O Diário em sua versão final publicada foi idealizado por seu pai Otto Frank e não por sua filha Anne. Confuso? Certamente você já manteve um caderninho onde escrevia todos os seus pensamentos, onde desabafava sobre coisas que não poderia conversar com outras pessoas, tais páginas inicialmente em branco eram seu melhor amigo e jamais te julgariam pelo que você escrevesse. Certo? Não? Bem, você pode simplesmente conhecer alguém que o tenha feito. Foi o que aconteceu a Anne Frank que em seu aniversário ganhou um caderno xadrez onde, alguns meses à frente, seria o lar dos seus sentimentos e veria seu amadurecimento como pessoa e escritora.

É nessa seara que surge Liebe Kitty, o romance idealizado por Anne e publicado agora pela editora Zahar mas que, infelizmente, ficou incompleto devido ao trágico fim que ela e mais de cinco milhões de judeus tiveram ao longo da Segunda Guerra Mundial.

O ano era 1942, a Holanda estava ocupada pelas forças nazistas de Hitler, a Europa se via naufragada numa sangrenta guerra e em meio ao caos, a perseguição aos judeus crescia a cada dia e de forma cada vez mais hedionda. O que seria ter vivido em meio aquilo tudo? Como um inocente poderia se erguer emocionalmente caso chegasse a sobreviver tal terror? E como poderiam escapar daquilo? Muitos fugiram para lugares distantes, zonas seguras, outros tentaram a sorte e tiveram aqueles, como a família Frank, que se esconderam “embaixo do nariz” do inimigo. É aí que surge a Casa dos Fundos – inclusive, este seria o título que Anne teria dado para o seu livro – o anexo localizado no prédio onde Otto Frank possuía sua empresa de geleias e onde a família, junto a alguns conhecidos, permaneceria escondida dos alemães por dois longos anos.

Cerca de dez anos depois da guerra deve ser engraçado ler sobre como nós, judeus, vivemos, comemos e conversamos aqui. Ainda que eu lhe conte muito sobre nós, você sabe bem pouco sobre nossa vida.

Em meio aos fatos históricos descritos nos capítulos, é impressionante a sensibilidade que a mais nova dos Frank possuía. Seu humor mordaz, sua sagacidade e imaginação que ultrapassava muitos da mesma idade, tê-la-iam feito uma excelente escritora de títulos que certamente atrairiam os mais diversos públicos. A forma como ela narrava em suas diversas cartas, para sua amiga imaginária de nome Kitty, o cotidiano daqueles que se esconderam no Anexo é extremamente vívida e o leitor experimentará a história passando em frente aos seus olhos como num filme.

Iniciando em 1942 até a última entrada em seu diário no ano de 1944, pouco tempo antes do fim da Guerra, Anne impacta a todos que tem a chance de ler seu relato. Ao mesmo tempo em que nos apresenta um documento biográfico, a jovem judia entrega a seus futuros leitores uma narrativa dos momentos de alegria, de tédio e de terror que passaram os habitantes da Casa dos Fundos. Tecendo bem os perfis dos personagens, muitas vezes sendo cruel – como bem podemos ser em determinadas fases de nossas vidas – com seu próprio sangue, nesta leitura, Anne me surpreendeu tanto positiva quanto negativamente. Talvez por eu estar mais madura ou talvez por ser esta a versão idealizada pela judia.

O papel aceita tudo, as pessoas não.

Querida Kitty vai muito além de contar os pensamentos de uma adolescente por meio de seu diário. Nessas páginas você encontrará sim as birras de uma garota que passa, como todas nós, pelas diversas fases do amadurecimento; encontrará sim a visão de uma judia e sua família que precisaram abdicar de tudo que lhes tornava quem eram e se esconder para ter uma chance de sobrevivência; encontrará sim relances do primeiro amor juvenil e de todas as dificuldades que a vida traz… mas, sobretudo, nessas páginas você encontrará uma garotinha que tenta descobrir quem é e qual o seu lugar naquele mundo que dolorosamente afundou na mais terrível das sombras: a da guerra.

  • Liebe Kitty
  • Autor: Anne Frank
  • Tradução: Karolien van Eck, Ana Iaria
  • Ano: 2021
  • Editora: Zahar
  • Páginas: 320
  • Amazon

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