Do exato ponto espaço temporal em que Johannes Gutenberg iniciou a reprodução de textos e obras literárias por meio de sua prensa de tipos móveis até o exato ponto espaço temporal em que você, caro leitor, senta-se confortavelmente em sua cadeira a fim de conferir minhas palavras dispostas em tela, muito se disse sobre este peculiar e encantador objeto que denominamos livro. De reprodução de ideologias consolidadas por poderosas classes dominantes a verdadeira ameaça aos sistemas de pensamento hegemônicos de um período histórico, de encantadores portas para fantásticos universos a assombrosas jornadas por entre os mais desoladores destinos humanos, de veículo para a transmissão de conhecimentos a terreno onde pequenas sementes de futuros possíveis foram semeadas, os livros passaram e passarão por uma incontável conceituação, significação ou definição.

“Um texto, um livro, é um local de descanso para as memórias de pessoas que viveram antes. Uma maneira para a memória ficar fixada após a alma ter seguido seu descanso.”

Outro dos inúmeros e essenciais motivos pelos quais seres humanos ameaçam a vida de outros seres humanos. Alvo de sutis ridicularizações e intrincadas manobras políticas, foco de perseguição sistemática e do mais primitivo e irracional ódio das massas, ele também foi digno do mais verdadeiro e sincero carinho. Inocentes em sua materialidade, em verdade nunca se delimitaram pelos moldes da neutralidade e, deste modo, foram reproduzidos e destruídos em inconstantes medidas.

Como poucas criações humanas, os livros gradativamente se transformaram, trilhando leal e arduamente seus caminhos de maneira interconectada aos nossos. Assim, avançaram por entre os mais inusitados contextos históricos socioculturais, modificando-se na mesma medida em que modificaram cada leitor curioso que ousou desvendar a magia contida em suas páginas. Em sua materialidade, não passam de páginas impressas por tecnológicas máquinas tipográficas, mas sua essência flexível e mutável possibilita que sejam exatamente aquilo de que precisamos, no exato momento em que precisamos e, se da primeira palavra que redigi ao longo deste curioso texto até o exato momento espaço temporal em que, absorvendo a luz emitida pela tela, você percebeu a presença constante e inquestionável do tempo, então, talvez você esteja preparado para refletir e carinhosamente compreender o mais poderoso encanto do livro.

De maneiras maravilhosamente misteriosas, livros não apenas transmitem pensamentos, conhecimentos e questionamentos por entre pontos espaço temporais, como também conectam em intrincadas tramas as linhas da vida de sujeitos dispostos no passado, presente e futuro, produzindo e reproduzindo padrões únicos, capazes de modificar para sempre nossa realidade. A mais profunda e preciosa magia do livro está na imprevisibilidade com que nos conectam, comprovando e materializando dialogismos que somente perceptivos leitores reconhecerão.

E embora Cidade nas Nuvens, em suas 750 páginas de instigante fluidez, recorra a uma porção considerável de temáticas e assuntos contemporâneos, problematicamente humanos, sua essência está firmemente delimitada pelas certezas de que livros nos conectarão a pessoas que permanecem tão distantes, no passado e futuro. Deste modo, os livros da narrativa ficcional de Anthony Doerr, mas também nossos próprios livros materialmente existentes na realidade, permitem que pessoas familiarmente desconhecidas estejam presentes em nossas vidas nos momentos exatos em que mais precisamos delas, transmitindo mensagens nos períodos exatos em que mais necessitamos.

É por todos e cada um destes motivos, bem como por todas e cada uma destas reflexões, que Cidade nas Nuvens explora tantas linhas narrativas, tantas vidas ficcionais, tantos personagens e pontos espaço temporais. Não nos importa reconhecer o momento inicial, indagando se a narrativa começa com a aventura de um pastor que se transformou em burro, peixe e ave ou se teve início com um escritor que, buscando maneiras de entreter e estender a tênue linha da vida de uma criança doente, edifica a fascinante história de um pastor que, ao alcançar o reino dos céus, descobre as maneiras como humanos podem classificar-se como tão preciosamente bondosos quanto perversamente destrutivos.

Assim, somente ao finalizar a leitura e delicadamente virar a última página, o leitor reconhecerá a impossível habilidade de acompanhar o mundo como ele verdadeiramente é. Deste modo, observamos à distância as nuances da vida de cada sujeito que já pisou neste admirável planeta. Ao voltar-se para as fascinantes maravilhas humanas e sua assustadora crueldade, o ambicioso pastor acompanha os caminhos trilhados por uma jovem aprendiz de costureira, um bondoso cuidador de bois, um perdido soldado que encontra refúgio na tradução, um adolescente incompreendido e uma inteligente garota que, ousando compreender a verdade para além das ideologias edificadas por poderes desvinculados da realidade, alinha a trama de personagens que viveram, sobreviveram, encontraram luz e se conectaram graças às páginas bolorentas de um livro de aventuras fantásticas.

História épica que avança por entre diferentes períodos históricos da trajetória humana. Ficção científica que demonstra a progressão dos desafios humanos, tão carinhosamente criados por suas próprias mãos e dificilmente superados pelas tão promissoras ciência e tecnologia. Encantadora jornada do herói que demonstra, com uma delicadeza peculiarmente humana e respeitosamente alinhada à nossa duvidosa essência, a superação de desafios, o amadurecimento de personagens que enfrentam o mundo e o transformam em sua morada. Uma verdadeira reflexão e homenagem ao livro Cidade nas Nuvens, como bom livro que é, será algo diferente ou todas essas coisas ao mesmo tempo, dependendo do leitor que ousar aventurar-se por suas páginas.

E é por esse motivo que pouco nos importa compreender onde, como e quando a história se inicia pois, assim como na materialidade de nosso caótico mundo real, os personagens da narrativa se interligam por meio de tramas tão mágicas e sutis quanto nossas próprias vidas. E assim, todo e cada parágrafo, toda e cada frase, toda e cada palavra que redigi neste texto poderá modificar e significar algo para cada leitor que ousar acompanhá-la…, mas para que você desvende os mistérios desta épica história humana, somente ousando virar a primeira página, permitindo que um novo livro se materialize diante de ti.

  • Cloud Cuckoo Land
  • Autor: Anthony Doerr
  • Tradução: Marcello Lino
  • Ano: 2022
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 752
  • Amazon

rela
ciona
dos