Maren Yearly faz parte de uma espécie misteriosa de carniçais – canibais, para facilitar nossa compreensão de seu processo de alimentação. Quando bebê, surpreendeu a mãe por estar adormecida numa poça de sangue, com a barriguinha cheia após devorar sua babá e deixar somente os ossos para contar história.

Desde o traumático incidente, mãe e filha abandonam emprego, escola e toda uma possibilidade de vida sempre que a garota, instintiva e incontrolavelmente, engole cada pedacinho de um colega de acampamento ou potencial interesse amoroso. De residência em residência, comunidade em comunidade, elas se locomovem, nunca descobertas e nunca abordando toda e qualquer questão que envolva a tendência alimentar da garota. Ao completar quinze anos, porém, Maren é abandonada pela mãe, recebendo em troca dos anos perdidos e marginalizados um envelope com dinheiro e uma certidão de nascimento, contendo o nome de seu pai biológico e a localização de uma pequena cidade dos Estados Unidos.

“Eu já tinha dentinhos, mas era muito pequena para engolir os ossos, então, quando minha mãe voltou para casa, encontrou uma pilha deles no tapete da sala de estar.”

Agora, a protagonista adolescente da narrativa vencedora do Alex Awards 2016, inicia uma jornada em busca das origens de sua fome, daquele que pode ordenar seus sentimentos, atribuir sentido à sua história e responder suas perguntas, alguém capaz de definir suas raízes e direcionar seu amadurecimento.

Por entre encontros e desencontros com outros exemplares de uma espécie que ela não sabia fazer parte – curiosamente, todos homens -, Maren Yearly persiste em sua jornada de autoconhecimento e aceitação… se alimentando de outras pessoas no caminho e, de maneiras que literariamente evidenciam as intenções confusas de uma escritora, sempre livrando-se de enrascadas e momentos vulneráveis das formas mais fáceis possíveis.

Com escrita acessível, permeada por uma leve camada de dúvida acerca das origens, necessidades e justificativas de uma espécie que nos parece tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante, Camille DeAngelis constrói aquilo que muitos classificariam como jornada de personagem.

Do início ao fim, o livro nos convida a conhecer trechos da infância da protagonista, lembranças de um passado filtrado pela dor da perda e incerteza sobre os sentimentos daqueles que ajudaram a construí-las, crescimento e amadurecimento de uma garota que, inesperadamente, se viu obrigada a encarar o mundo da maneira como ele se apresenta para ela. Nesse sentido, Até os Ossos é uma jornada de personagem, uma narrativa de crescimento e amadurecimento forçado de uma personagem que viveu à distância durante toda a vida e, quando abandonada, passa a perceber com maior clareza, as nuances e limites de sua marginalidade.

Paralelamente, essa é uma história que levanta uma porção considerável de interpretações, as quais por muitos dias busquei, li e refleti com carinho… mas que não foram suficientes para me fazer acreditar que o livro não passe, exclusiva e simplesmente, de uma narrativa sobre o crescimento de uma adolescente canibal que, apesar de marginalizada, peculiarmente encontra, em sua maioria, pessoas dispostas a auxiliar seu caminho, por mais vulnerável e perigosa que seja a situação em que ela se encontra.

Nesse sentido, recorro a própria carência de detalhes, aprofundamento contextual e de realidade ficcional, cenas ou acontecimentos que possibilitem uma interpretação em qualquer direção possível. Apesar de adoravelmente escrito, sendo instigante em sua maneira peculiar de narrar a jornada de Maren Yearly, Até os Ossos não foi capaz de me oferecer material suficiente para, por exemplo, afirmar tratar-se de uma história sobre poder e sexualidade femininos.

Se pensarmos na existência de tal poder, ele estaria localizado numa suposta ingenuidade fingida? Afinal, mesmo imersos nos pensamentos e sentimentos da personagem, os leitores não são capazes de destrinchar com definição se as ações e maneirismos ingênuos de Maren são mera encenação! Pensando nessa possibilidade, enquanto leitora critica, acredito ser, no mínimo, problemático afirmar um mascaramento consciente de intenções e ações, devido as infinitas conotações que tal interpretação pode proporcionar.

Por outro lado, nos momentos em que a sexualidade é evocada, ocorre permeada por conotações de afloramento de hormônios e curiosidade juvenil; tentativa infantil de aproximar-se, no sentido de um primeiro amor, da garota que conquistou seu interesse; ou mesmo, busca de uma relação fácil e casual… mas, estranhamente, faltam bases para afirmar um discurso sobre a sexualidade feminina, uma vez que talvez ele provenha de uma perspectiva problemática.

Nesses momentos, Maren parece se distanciar do acontecimento, parece amordaçar sentimentos e pensamentos para, ou nos manipular – fazendo-se passar por uma garota inocente, que ela verdadeiramente é e aqui não faltam evidências de tanto-, ou expressar um mundo onde homens sempre visualizarão na figura feminina algo capaz de satisfazer seus desejos, suas necessidades, de coloca-la em posição de inferioridade a fim de garantir que eles permaneçam no topo. Mas então surge uma viúva-negra, repleta de nuances e mistérios, livre de justificativas narrativas e textuais, que, embora abale o estado de coisas e a balança do poder, ainda assim é prevalecida por uma história que não se preocupa em construir cenários, contextos e consequências plausíveis, cabíveis, racionais para tudo aquilo que observamos.

Por todo e cada um desses motivos, Até os Ossos é, na humilde compreensão que posso lhes oferecer, uma jornada de personagem, uma história sobre amadurecimento e o percurso de uma adolescente canibal – carniçal para os mais chegados -, por entre os limites de uma realidade que a excluí, marginaliza e abandona. Ele é apenas isso, porém, sendo “apenas isso”, não pode deixar de ser considerado um instigante e curioso livro. Um livro bom… nem perfeito e nem terrível, mas bom! Assim, real e definitivamente será o que é, como comprovam os incontáveis comentários que li sobre a obra. Agora, resta saber quais contornos ele terá para cada um de vocês.

Até os Ossos deu origem ao filme homônimo de Luca Guadagnino, estrelado por Taylor Russell no papel de Maren e Timothée Chalamet.

Avaliação: 3 de 5.

  • Bones & All
  • Autor: Camille DeAngelis
  • Tradução: Jana Bianchi
  • Ano: 2023
  • Editora: Suma
  • Páginas: 296
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